Se é verdade o que dizem das cidades — que todas elas são como um organismo vivo — é provável que o coração de Porto Belo esteja enterrado em sua Praça dos Pescadores. Localizado no centro histórico do município, defronte ao tradicional Casarão e próximo da Praça da Bandeira, esse quadrilátero sombreado por jambolões e oficialmente instituído como logradouro em 1962 testemunhou gerações de pescadores artesanais se preparando para enfrentar mais um dia de mar. E os viu contar anedotas, trocar impressões sobre as últimas notícias, maldizer os desafetos e olhar de soslaio as turistas de poucas vestes que usam o local como embarcadouro para a ilha João da Cunha.
Durante 32 anos, a praça também foi “escritório” de Valdemir Timóteo Rebelo, de 74 anos de idade. Miro, como todo mundo o conhece, já se aposentou, mas ainda frequenta com a sua tarrafa o moderno trapiche construído em 2011 para servir de píer turístico, com o propósito de pescar paratis. Não é ali, entretanto, que o encontramos numa tarde de sábado de céu límpido e quente em pleno mês de agosto. O ponto de encontro desta entrevista foi a sua morada, antiga casa de seus pais, duas quadras atrás da Prefeitura, na Rua José Guerreiro Filho.
Enquanto Isadora prepara o equipamento, Miro nos apresenta a seu barco, “Tio Miro”, um bote com casco de fibra de 5,5 metros de comprimento e 1,45 metro de boca adquirido faz pouco tempo por R$ 2 mil, uma pechincha. Ato contínuo, nos pergunta se a entrevista vai demorar, pois está agoniado para saber qual foi o resultado do jogo do bicho (“é a minha cachaça”). Neste dia, a sua aposta foi na borboleta e no jacaré.
Isa pressiona o play e começamos a repassar a vida de Miro. Soubemos que ele não nasceu aqui onde estamos, mas um pouco mais para lá, nas imediações da Carioca, a gruta construída sobre um olho d’água, principal fonte de água potável dos moradores antes que os canos da Casan, a companhia estadual de abastecimento, rompessem as estradas e alcançassem a maioria das famílias do Centro. Diz-se que foi construída por mãos escravas no final do século 18 e está de pé até hoje, tendo sido considerada patrimônio histórico-cultural do município em 2015. Não é, entretanto, um sítio turístico muito valorizado.
Próximo dessa fonte natural Timóteo Ricardo Rebelo — que Valdemir descreve como “cego, aleijado e carpinteiro” — e Laudelina Maria Rebelo ergueram a deles casa do barro, literalmente. Na humilde habitação — depois substituída por uma de madeira — nasceram os sete filhos, pela ordem: Valdete, Valmor, Valdemir, Antônio, Dulce, Maria e José. A época, como se pode imaginar, era de penúria. “Mas divertida”, assevera o pescador, que recorda do alguidar com que eles todos eram alimentados no chão da cozinha, cada qual com um pratinho de barro para se servir (“café com banana, pirão com peixe….”).
Lembra também das tardes em que ia, junto com Valmor e mais “seis, oito rapaz pequeno”, espiar a movimentação no mar próximo à salga que ficava quase defronte à Igreja Matriz. Sempre que assomava um “barco de japonês” com peixes para descarregar (charuto e sardinha), a molecada, armada com balaios de meia quarta, se apresentava para ajudar. Ao final, voltavam “tudo contente” para casa, o balaio repleto de peixes que dariam almoço para uma semana.
Miro estudou pouco. Avançou até a quarta série do Grupo Escolar Tiradentes. Mas trabalhou muito. Além de fazer “frilas” na salga, ajudava o tio, João Rebelo — de quem se contava que possuía a habilidade de nadar até a ilha de Porto Belo e voltar sem nunca molhar o chapéu de palha — nas roças que ele possuía para lá do “Tapume”, nas encostas do morro de Zimbros. Suas tarefas (e dos irmãos) consistiam em capinar o solo, recolher a lenha que seria vendida aos carroceiros e separar um molhe para, ao fim do dia, trazer nas costas até em casa. Naquele tempo, a lenha era o único combustível disponível, com o qual se fazia comida e esquentava a água que se despejava na gamela de madeira para tomar banho. A água, você deve lembrar, era retirada da Carioca, em latões de dezoito litros que os rapazes enchiam durante a semana, de modo a folgar aos domingos.
Em meados dos anos 1950, algo surpreendente aconteceu: uma baleia foi arpoada e trazida até a ilha João da Cunha para ser carneada. Era o final da pesca do cetáceo no litoral catarinense, que durou até 1962. A baleia, possivelmente uma franca, foi morta para que, de sua gordurosa carne, fosse retirado o óleo usado para acender as lamparinas e tirar o povo do breu.
Do outro lado, no continente, juntou gente para ver. Miro tinha uns oito anos, talvez dez, e já puxava redes de arrasto. Ele embarcou no bote “Bochecha”, de seu pai, e foi ajudar a transportar as postas até em terra, onde um caminhão frigorífico vindo de São Paulo as recolhia. Cortavam quadrados de 50 centímetros por 15 de espessura e cada uma das três canoas envolvidas na operação fazia até seis viagens por dia, trabalho que deixava o pessoal coberto com uma resina difícil de tirar. Durante quase um mês, a baleia foi sendo laboriosamente descarnada e seu cheiro acre empesteou a cidade sempre que o vento nordeste batia. No fim, a ossada foi enterrada na praia da ilha, enquanto algumas sobras de carne serviram de adubo aos jambolões da Praça dos Pescadores.
Quase uma década depois, aos dezessete, Miro juntou seus documentos e seguiu rumo a Santos — o destino de todo jovem local disposto a ganhar a vida. Após uma infância fazendo bicos no mar, na roça, ajudando o pai a pregar assoalhos e a transportar materiais diversos na carroça que ele adquiriu, sua perspectiva de futuro estava no convés de um barco no litoral paulista. Não precisou, porém, seguir de ônibus até o porto pesqueiro: seu tio Abmael era proprietário do Rosene, um camaroeiro de 20 metros que estava ancorado em Porto Belo. Valmor, seu irmão mais velho, era um dos tripulantes. Miro foi com eles, mas não deve guardar boas lembranças dessa viagem inaugural: o novato enjoou terrivelmente e continuou apanhando do balanço do mar nos meses que se seguiram. Não ajudava nada o fato de os cinco homens do convés terem de puxar a rede de pesca por sobre a amurada, o que fazia com que o Rosene inclinasse de modo assustador e fosse varrido pelas ondas, encharcando a todos. “Hoje em dia, esses barcos mexicanos, como eles chamam, embarcam a rede só no teco, puxam no guincho, já botam a sacada do camarão dentro do barco, tu não te incomoda, não faz força, quem faz força é o motor”, compara.
“Quando embarquei, eu enjoei uns três ou quatro meses, quase morri. Mas não desisti. No fim, aprendi a ‘língua Maranhão’”
Apesar do medo e do desconforto, o portobelense perseverou (“aprendi a ‘língua Maranhão’, como diz a turma”) e, ao voltar para casa com o bolso estufado do primeiro salário que recebeu (150 contos), teve a satisfação de entregar todo ele ao pai, que o usou para comprar a madeira com que construiu a primeira casa que eles tiveram no terreno onde até hoje Miro mora.
Seguiram-se praticamente dez anos de vida em Santos, a maior parte deles pescando camarão rosa — às vezes no Sul, às vezes próximo das ilhas de Queimada Grande, Alcatrazes ou do litoral carioca. Não deixa de ser irônico, portanto, que esse crustáceo tão apreciado, base de pratos caros em muitos restaurantes, esteja agora distante de sua mesa (“tanto que eu já matei, tanto que eu já vendi, tanto que eu dei de barato”).
Quando estava beirando os trinta anos de idade, Valdemir viu a pesca fraquejar. A concorrência tinha aumentado e o dinheiro que pingava no convés encurtou. Decidiu pegar a trouxa e dar baixa, voltar para onde tudo começou. Timóteo já havia partido; dona Laudelina continuava na casinha de madeira da Rua José Guerreiro Filho. Solteiro, Miro continuou a viver com ela.
De fato, pode-se dizer que Miro jamais casou. Namoricos ao longo da juventude decerto os teve, mas o caso mais notável ocorreu quando já era maduro: durante cerca de oito anos ele viveu com Diones Serpa, período após o qual cada um preferiu seguir o próprio caminho. Assim, tio Miro permaneceu sozinho, vivendo “mais Deus” na meia-água que construiu depois que sua mãe se foi. Como o Todo Poderoso não é de se importar com os desmazelos da solteirice, vive como quer, em um cômodo que mal se percebe de fora, camuflado pelo rancho atravancado que faz as vezes de vestíbulo.
Depois que retornou a Porto Belo, Miro passou algum tempo fazendo bicos. Na sequência, o mar, sempre ele, o chamou para perto de si. O pescador assumiu o leme de uma das bateiras que os filhos de Zé Dodóca usavam para levar veranistas até a ilha de Porto Belo e imediações. Como o primeiro trapiche de embarque só seria construído anos mais tarde, os pescadores precisavam ancorar o barco pela popa, amarrá-lo em terra e encalhá-lo na praia para que os clientes subissem a bordo usando uma escadinha ou algo do tipo.
Logo que possível, Miro comprou a sua própria embarcação e um “ponto” de transporte. Em meados dos anos 1980, início dos 90, não havia o empreendimento turístico na ilha João da Cunha, que era usada como uma praia de camping gratuita. Muita gente vinha de longe para passar o dia, a semana ou até o mês inteiro no local. Assim como os demais pescadores que se dedicavam a tirar um extra no verão, Miro deixava os campistas na ilha e voltava na data combinada para buscá-los. Só então é que seria pago (“quinze contos”).
É provável que os campistas não conheceram a história da baleia trinchada ali mesmo, naquela praia. Não sabemos, no entanto, se algum deles teria visto ou ouvido alguns dos mistérios que se manifestavam no lugar, segundo o que Miro ouviu falar por aí. Boa parte das histórias era contada por Tonico Pinheiro, que morou um bom tempo na ilha. Era dele, por exemplo, a porca que cruzava a porção de mar que separava a João da Cunha da praia do Araújo, no caminho do Araçá, para assaltar a roça de mandioca de seu Zé Claudino. Outras lendas, um pouco mais misteriosas, dão conta de luzes avermelhadas atravessando do costão das Vieiras até a ilha à meia-noite ou barulhos sinistros na praia insular quando não havia vivalma por perto.
“Eu nunca vi”, confessa Miro. Talvez porque não seja muito de sair à noite, ocasião mais propícia à ocorrência de visagens. Quando muito, permite-se tomar uma ou duas cervejas na Chopp & Vídeo durante o verão. Como o calor ainda não chegou, prefere permanecer debaixo de seu telhado depois que o sol se põe. Durante o dia, entretanto, é difícil encontrá-lo por lá (fizemos duas investidas antes de ter a sorte de achá-lo em casa para marcar a entrevista). Aposentado faz uns quinze anos, evita ficar engordando diante da tevê. Gosta de subir na bicicleta (tem duas) e sair para visitar parentes ou acordar cedo para caminhar. Mas, se você não encontrá-lo zanzando por aí, é provável que esteja na beira da praia, lançando a tarrafa para pegar os paratis e fazer uns trocados (remuneração de aposentado não é lá essas coisas). Ou, ainda, a bordo do “Tio Miro”, pescando de linha o peixe-porco, que está em época. No mais, é como ele mesmo diz: ficar em casa para quê? “Minha função agora é pescar com o barquinho de linha e tarrafear. Vou fazer mais o quê? Já trabalhei o que chega. Agora é mais pra descansar, se divertir e passar tempo…. até Deus querer”.
(*) Entrevista concedida em 11 de agosto de 2018.