Após o temporal que desabou sobre a cidade na noite de sexta-feira, 13, o sábado amanheceu nublado e fresco. Há uma movimentação diferente no centro esta manhã, por conta do feriadão: no dia anterior, Porto Belo completara seus 185 anos de emancipação política. Para comemorar, a municipalidade promoveu a entrega da revitalizada Praça da Bandeira, cujas obras se arrastavam desde muito antes da temporada passada e serviram de munição (e consequente vidraça) durante a campanha eleitoral de 2016 obras que, por sinal, devem continuar, considerando o quanto ficou por fazer, apesar do corte da fita inaugural.

Do escritório no piso superior do Vulcão Materiais de Construção, seu José Carlos Moreira, de 81 anos de idade, observa as linhas modernas que substituíram os traçados retos e convergentes da antiga praça, inaugurada em dezembro de 1981. No seu tempo de garoto, esse quadrilátero bem defronte à Prefeitura não passava de um pasto rodeado por valas, como se ali houvesse um castelo medieval; pontilhões de madeira davam acesso ao campo improvisado onde a garotada da sua época jogava futebol aos domingos.

Acostumado a tê-la como companheira (está há mais tempo por aqui do que ela própria), seu Zeca vê a repaginada na praça com bons olhos: “Ficou bonita”.

Faz quase 60 anos que o edifício comercial na esquina da Manoel Felipe da Silva Neto com Irineu José Moreira é o endereço de trabalho de José Carlos e seus filhos. Irineu José Moreira, aliás, é o nome de seu pai, pedreiro nativo que se casou com Marília Maria Moreira e teve com ela cinco filhos, três homens e duas mulheres. José Carlos é o segundo da prole. Durante uns três anos, Irineu foi delegado de polícia, o que pode ser considerado uma ironia, uma vez que, em sua meninice, Zeca e os amigos foram o terror da força policial local. Eram especialistas em dar nós no capim duro que acarpetava as ruas e fazer troça de Chico e Manuel Polícia, que, ao correr atrás deles, tropeçavam nas armadilhas, para deleite da molecada.

Irineu e Marília moravam duas quadras mais acima, na mesma rua, às costas da recente Capela do Senhor dos Passos, esta vizinha da Prefeitura que tampouco existia naquela época, em seu lugar só havia uma lagoa rodeada de imbés. Viviam numa modesta construção de madeira, de 7×5, com fogão a lenha. “Naquele tempo, era tudo pobre”, explica seu Zeca, que se recorda das noites vazias de gente, pois não tinha energia elétrica e ninguém se atrevia a andar às cegas. Mais tarde, no tempo em que frequentava os bailes de carnaval no salão de Egídio, em Bombinhas, esse detalhe pouco importava: seu pessoal dormia na rua mesmo, após a folia, junto de um pontilhão próximo de onde hoje é a Pioneira.

“FIZ ALGUNS PÃES”

Seu Zeca não teve muito estudo. Suas poucas lições foram tomadas numa antiga escola de ensino primário, separada alguns passos do casarão que ainda vemos vigiar com austera dignidade o píer turístico da cidade e sua praça sombreada por jambolões. Desse tempo, guardou os nomes dos professores: dona Eraclides e seu Jorge.

Aos quatorze anos, José Carlos começou a aprender seu ofício. Antônio Elesbão tinha uma padaria, também próxima ao Casarão, e o contratou como entregador de pães. Toda manhã, o jovem Zeca amarrava três sacos de trigo de 5 quilos cheios de biscoitos, bolachas e pães numa vara de bambu, punha nas costas e saía a entregar pela cidade. Cobria todo o município, caminhando daqui até Bombas, Bombinhas, Zimbros e Canto Grande, carregando seu fardo de uma praia a outra. Ganhava 20 cruzeiros por viagem.

Não demorou muito e ele passou a ajudar na padaria após as entregas do dia, de modo a ganhar alguns pães para levar para casa. Elesbão o promoveu a ajudante e, seis meses depois, a padeiro profissão que exerceria pelos próximos 53 anos: “Fiz alguns pães”, garante.

Após seis anos como funcionário de seu Antônio “Lisbão”, José foi ser dono do próprio nariz: construiu um rancho no terreno dos pais e montou ali sua padaria, iniciando a vida de empresário. Dona Marília o ajudava no negócio, assim como o Rosa, sujeito que certo dia apareceu, vindo de Florianópolis, em busca de emprego. Vendiam os pães para os mercados da cidade — com a diferença que, agora, usavam uma carroça para o transporte.

Trabalhando duro na boca do forno (“naquela época não tinha luz, fazia tudo a mão”), Zeca progrediu. Além dos pães, ele entregava mercadorias nas vendas, que adquiria em sacos de 60 quilos. Com o dinheiro que ganhou, comprou de Osvaldo de Souza o terreno ao lado do campo de futebol da turma, vizinho de uma série de casas geminadas. Ergueu uma construção de madeira de 6×4 metros e, nos fundos, instalou a nova padaria. Ainda sobrou espaço para fazer um curral de porcos, que eram alimentados com as sobras da fornalha. “Eu devia ter uns 23 anos”.

“VOU ARRUMAR UMA MOÇA E ME CASAR”

Enquanto os negócios iam bem, a vida amorosa estava uma bagunça. Seu relacionamento com Eli, filha de Canor, já durava seis anos, mas os dois brigavam como cão e gato, rompiam e reatavam com frequência. Havia, por outro lado, uma moça do Perequê, Maria de Lourdes Rebelo, filha de João Emiliano, de quem Zeca foi se afeiçoando. Certo dia, ele rompeu de vez com a namorada e decidiu: “Vou arrumar uma moça e me casar”. Voltando de um baile em Zimbros, montou no cavalo e seguiu para o Perequê, onde encontrou Téta (apelido de Maria). Combinaram de se encontrar no domingo seguinte, em um baile no bairro Vila Nova.

No dia marcado, Zeca jogou uma partida de futebol pelo Miramar (era um ponta-direita razoável) e depois se aprumou para ir ao baile. Naquela época, os rapazes ficavam num dos lados do salão, as moças do outro. Quando a música iniciava, os dois grupos se levantavam e, conforme iam formando os pares, ocupavam o centro da pista. José Carlos reservou uma mesa, em volta da qual ele e a acompanhante conversaram. O rapaz informou: “Quarta-feira, eu vou na casa do teu pai”.

Téta ficou um pouco insegura, não achou que fosse uma boa ideia. Mesmo assim, o apressado pretendente seguiu com seus planos. No domingo após o baile, almoçou na casa de Idalina, irmã da moça, e anunciou: “Quarta-feira, eu vou a Itajaí comprar as alianças”. No sábado seguinte, oficializou o noivado. Emiliano, então, quis saber para quando seria o casamento: “Por mim, pode ser no sábado que vem”, respondeu o noivo. Casaram-se um mês e meio depois. Maria de Lourdes tinha dezenove anos; José, 27.

Disposto a fazer tudo conforme o figurino — contrariando a tradição vigente de “fugir” com a noiva —, Zeca encomendou missa na igreja matriz e festa na casa do sogro, a quem tranquilizou, garantindo que assumiria as despesas. Comprou, inclusive, um pesado barril de chope: “Os rapazes tomaram um pileque”, sorri.

Téta mudou-se para a casa do marido naquela mesma noite e, na segunda-feira seguinte, se incorporou à rotina de trabalho na padaria, que então contava com cinco empregados. Após dois anos, nasceu a primeira filha do casal, Neise. Depois vieram Cristiane, Alexandre e Leandro. A seu tempo, cada qual ajudaria a consolidar o patrimônio empresarial da família.

Por volta de 1974, Zeca fez sua primeira tentativa de diversificação: adquiriu o único posto de gasolina que operava na cidade, pertencente a um grupo de moradores de Bombas. O posto ficava no mesmo lugar do atual, no centro de Porto Belo. Mas, na época, não passava de uma “casinha e uma bomba”. Custou-lhe 120 mil cruzeiros, metade à vista e o saldo em 40 meses. Tão logo comprou, quis se livrar dele.

Primeiro, porque não dava lucro. Os dois únicos automóveis regulares da cidade eram a picape Chevrolet de Neném Matias e a caminhonete Desoto com carroceria de madeira de Lilo Silva. O mais que aparecia eram os caminhões que chegavam com mercadorias para abastecer o comércio local. Um consumo de 6 mil litros de gasolina por mês.

Segundo, porque era difícil conseguir combustível. O proprietário precisava ir a Itajaí obter o produto, e o fornecedor não se mostrava muito entusiasmado, pois a estrada (que na época passava pelo morro do Encano) era péssima e o frete, pequeno. “Eu tinha que ir lá pagar e, depois de três, quatro dias, é que vinha a gasolina”.

Para piorar, um dia estacionou diante da bomba um desconhecido. Neisi estava cuidando do posto e ele passou-lhe um bilhetinho, alegando ser de seu pai. No papel estava escrito que ela deveria encher o tanque e dar 400 cruzeiros ao sujeito. Quando José Carlos soube do golpe já que não escrevera bilhete algum , ficou angustiado.

Assim, tratou de pôr o negócio à venda. Não esperava lucrar com isso, apenas recuperar o valor investido. Um interessado apareceu e disse que compraria. Pediu que não negociasse com ninguém mais, pois em alguns dias voltaria com o dinheiro. Nada. Depois de dois meses, o camarada retornou e fez o mesmo trato, sem novamente cumpri-lo. “Vendi o posto duas vezes para ele e ele não apareceu”, ironiza seu José, que acabou dando o posto para um pedreiro de Itajaí, em troca da construção da sua casa, erguida no terreno que adquiriu ao lado da antiga propriedade de seus pais. Feita de alvenaria, com um único pavimento e visual retangular, a casa continua do mesmo jeito. Atualmente, é Leandro, o caçula, quem mora nela.

“ELA É A COISA MAIS QUERIDA”

Apesar do fracasso, Zeca não desistiu de buscar alternativas de negócio. Sua próxima cartada foi montar uma pequena venda anexa à padaria. Mas o novo empreendimento sofreu um revés justo no dia de Natal: na véspera, uma janela ficou aberta, e alguém com um nefasto senso de oportunidade e nenhum espírito natalino aproveitou para limpar o local. Quase todo o estoque de roupas da venda sumiu.

Zeca poderia ter parado por ali, não fosse a tenacidade de sua esposa. “Ela é a coisa mais querida”, diz de sua companheira de jornada, hoje aos 74 anos de idade. Téta sugeriu que abrissem, ao lado da padaria, um mercadinho. Os dois estabelecimentos receberam o nome de “Vulcão” (inspirado na marca de um forno contínuo que José mandou buscar de São Paulo). As prateleiras para as mercadorias ele mesmo quem fez, com caixas de madeira usadas para acondicionar sabão que seus colegas de comércio lhe forneciam.

A dobradinha mercado e padaria permaneceu como o foco dos negócios até aproximadamente o final dos anos 1980. O primeiro, porém, acabou sendo substituído pelo comércio de materiais de construção, que José iniciou como uma seção de ferragens na mercearia mas se tornou o carro-chefe a partir de meados dos anos 1990, com a aquisição de caminhões e o estabelecimento de uma filial em Canto Grande, Bombinhas. Nesse meio-tempo, Alexandre, que começou a vida dirigindo caminhão de fretes, assumiu a testa da empresa. Seu pai, que estabelecera como limite para a aposentadoria os 60 anos de idade, esticou o prazo por mais uma década. Parou, enfim, por volta de 2006, pressionado pelos filhos e por um problema cardíaco. Deu adeus à padaria, apagou a luz e fechou as portas.

Não foi, evidentemente, o fim da marca Vulcão, que hoje estampa a fachada das duas lojas de materiais de construção e tem entre seus ativos imóveis em Bombinhas e Porto Belo além de uma construtora, o mais recente empreendimento de seus herdeiros.

“HOJE ESTÁ TUDO FÁCIL”

Seu José Carlos Moreira reconhece: jamais pensou que realizaria tanto. Agradecido pelo que conquistou, vive a satisfação de uma aposentadoria tranquila, feita de caminhadas até a beira-mar e passadas ocasionais pela loja vizinha à praça, onde pode se inteirar das novidades e distribuir bons conselhos sempre que solicitado. A maior parte do tempo livre, porém, ele gasta em seu sítio, localizado na subida do morro de Bombas. Ali, alimenta suas criações e reúne a família para animados churrascos. Também se distrai realizando pequenos trabalhos de carpintaria (“aquela loja do Canto Grande, as prateleiras foram eu que fiz”, gaba-se).

O que não lhe agrada é pegar a estrada. “A Téta gosta muito, qualquer passeio ela vai”, ressalva, contando que os Estados Unidos são um destino recorrente da esposa. Ele, com exceção de um ou outro cruzeiro marítimo, prefere ficar sossegado — seja no sítio, seja na vistosa residência onde passou a morar faz uns oito anos, na encosta do morro que ocupa boa parte do centro de Porto Belo e o separa da Costeira de Zimbros. O local é uma espécie de condomínio dos Moreira, pois também abriga as casas de Alexandre e Neisi, com suas respectivas famílias.

Quando ainda morava na Rua Irineu José Moreira, seu Zeca foi surpreendido por bandidos dentro da própria casa, e em plena luz do dia. Sentindo o cano frio do revólver na nuca, só lhe restou manter a calma e deixar que os invasores fizessem o serviço: cofre arrombado, joias da esposa levadas e uma dor enorme pelo faqueiro banhado a ouro, comprado de um caixeiro viajante há muito tempo, que também se foi. Mais tarde, quando o endereço já pertencia a Leandro, a residência foi novamente “visitada” por ladrões.

Essa é, portanto, a única queixa que ele tem dos tempos atuais. Um sentimento de insegurança que seu Zeca atribui à maldade que perpassa nossos dias. Tudo o mais melhorou, no seu ponto de vista. “Quando eu era pequeno, era terrível, hoje está tudo fácil. Aquela era uma época de miséria. Dizem que tinha peixe, tinha tudo, mas era difícil pegar um peixe bom para comer, tinha só aquelas coisas miúdas”, destaca.

Assim, sem glamurizar o passado e de bem com o presente, José Carlos Moreira vai levando a vida. Algum pesar por algo que deixou de realizar? “Não. Tudo o que eu pude fazer, eu fiz”.

Entrevista concedida em 14 de outubro de 2017.

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