O que acontece quando o presente se torna um borrão míope? Quando não há ao menos o ontem, substituído pelo outrora, e a sucessão dos dias se desvanece como um vulto escondido em um sonho ruim? Dona Maria não tem explicação para isso, enredada como está em sua narrativa particular, que transforma qualquer fato do dia em uma surpresa que logo irá se repetir. Para ela, o único refúgio possível está no passado. O correr do relógio já não mais indica o seu horizonte.

Estranho modo de dobrar o espírito tem o Alzheimer: esconde os vestígios do dia como um fugitivo medroso de suas pegadas, engole a linearidade dos acontecimentos e fragmenta o cotidiano, promovendo um estranhamento que, aos poucos, conduz a uma perda irreversível do eu. Em um país com uma crescente população idosa (15 milhões de sexagenários), sua presença se torna cada vez mais trivial, uma companhia indigesta à qual não se pode furtar.

Números, entretanto, não dão conta do que seja perder, aos poucos, a identidade. Sucumbir à demência. Nós não sabemos, dona Maria não sabe. Mas ela vive essa realidade diariamente, aos cuidados da filha Lenilda, 60, e na companhia permanente de Lauri, 57, e Zeli, 55, ambos acometidos de idiotia e por muito tempo vítimas do riso maldoso dos pescadores que frequentam o cais do Araçá, quase defronte de onde vivem dona Maria e seus filhos.

“Quem é esse moço?”
No tempo em que habitamos, o sábado é de tempo firme e logo mais haverá uma homenagem tardia aos pais dos alunos da Escola Municipal Francisco José Marques. O céu está limpo e os barcos São Paulo II e Ana Paula II descansam majestosamente de cada lado do cais. No tempo de Maria, há o medo de que os “praças”, surgidos em seu caminho para a roça, planejem fazer-lhe algum mal. “Pode passar sem medo, dona”, tranquilizam-na.

No tempo presente, a luz do sol aquece a sala e as onomatopeias felizes de Lauri enchem o ar. Maria, o corpo frágil protegido por um suéter de lã, conta 91 anos vividos, mas esse não é um dado preciso. Talvez tenha vivido mais. Em seu tempo, há curiosidade pelos estranhos que vieram nesta tarde de sábado ouvi-la: “Quem é esse moço?”, pergunta. A resposta também será irrelevante, pois em alguns minutos não saberá mais de quem se trata.

Lenilda puxa-lhe pela memória, igualmente fragilizada. Quem sabe ainda lembre das histórias de piratas que costumava contar à neta. Piratas, escravos e mal-assombros. Há confusão no olhar da octogenária, mas também há doçura. A visita parece animá-la, mas não é possível adentrar o labirinto onde se perderam suas reminiscências. Só é permitido lançar um olhar do lado de fora do grande corredor de entrada, e dali obter alguns vislumbres de coisas furtivas que se movem onde a luz já não alcança.

“Conta para eles sobre a ratoeira”, instiga a filha, promovendo uma triste inversão de papéis: em algum momento, 60 anos atrás, podemos imaginar Maria tentando fazer brotar da pequena Lenilda os primeiros sons. Hoje, é esta quem tenta trazer à tona as palavras que ameaçam naufragar no inconsciente da anciã. Falta-lhe, porém, paciência, e ao primeiro sinal de devaneio ela volta a fustigar a pequena senhora: “Conta para eles sobre como a senhora trazia lenha do morro”.

“Vamos cantar uma ratoeira?”
No tempo de Maria, dona Braulina Alexandrina de Jesus conclama as meninas para cantar a ratoeira: “Abra a porta ou a janela e venha ver quem é que eu sou/Sou aquela desprezada, venha ver quem me desprezou”. Maria está preocupada, pois não tarda a escurecer. “É melhor ir mais cedo, minha mãe”. Braulina, no entanto, diz que não há motivo para receio: “Vamos nós tudo, não tem homem, é só rapaz”.

As terras da família ficam na Ponta da Enseada, para lá da fonte do engenho. Nem uma coisa nem outra hoje existem. Um belo gramado e casas de ricos ocupam o lugar das roças. Ainda que a memória não lhe pregasse peças, dona Maria não reconheceria aquele chão como o mesmo que um dia foi seu. Henrique José Caetano, seu pai, ainda toca o engenho nesse tempo em suspensão, e seu carro de bois tem uma longa viagem pela frente, pois é em Itajaí que a farinha será comercializada. “O engenho de farinha acabou-se agora”, percebe ela, por um momento.

Lá do fundo da ravina vem Maria, um molhe de lenha atado às costas. Quantas vezes essa rotina se repetiu? A noite chega e as costas estalam de dor. Dor que ataca o ventre anunciando que mais um filho está para nascer. É preciso largar a enxada e correr, antes que o rebento quebre o silêncio com seus protestos de vivente em meio aos pés de mandioca. Será assim com todos os outros.

“Ali tem coruja e tem beiju, qués?”
“Meu pai, faz pouco tempo que ele enterrou-se”. Isso pode ter sido neste século, pode ter sido muito antes. “Bem clara, clarinha”, Braulina não durou muito — “enfraqueceu”. Coube-lhe a rotina de filha mais velha, seis irmãos, colher para comer, assar o peixe na brasa, secar o beiju no forno para vender, dormir todos de improviso sobre o chão batido. Com a chegada da vida adulta, a realidade do casamento, talvez não exatamente desejada ou apenas um engano da memória, deixar de dever obediência ao pai para dá-la ao marido, Manoel Francisco Marques, com o qual nunca teve intimidade, mas com quem deu ao mundo oito filhos, Ildo, Cláudio, Nilda, Elezilda (falecida), Lenilda, Sueli, Lauri e Zeli. Manoel que, em um 14 de agosto, faz mais de vinte anos, se foi. Tinha 69 anos. E o tempo seguiu, em sucessão.

“Eu andava de uma banda para outra, varria a casa, fazia a comida, trabalhava em roça, e passou-se. E tá se passando o resto que tá aí ainda”, avalia dona Maria, num lampejo de lucidez. Essa percepção da finitude das coisas, que nem a idade avançada ou o estágio da doença parecem obliterar, marca o seu falar: “Tudo se passa, meu filho”. Um passar lento, como um relógio do qual não desgrudamos os olhos dos ponteiros, mas que transforma crianças em homens que se lançam ao mar, que saem a ganhar a vida (“não vão inticá com ninguém por aí”, ouvem da mãe zelosa), que constroem a própria família e voltam à casa materna somente para um café da tarde (“Ali tem coruja e tem beiju, qués?”), um almoço de domingo. Ficaram os filhos que, sendo homens, não deixaram jamais de ser crianças, Lauri e Zeli (“Marreco”), estes também presos em seu próprio tempo, estático. Lauri exibe o figurino para a missa e balbucia feliz ao se ver refletido no visor da câmera, retribuindo a gentileza com um copo de refrigerante. Aos cuidados de quem ficarão os dois quando o tempo de Maria acabar? Lenilda, possivelmente. Não se pode dizer se essa questão preocupa a velha senhora, pois uma pergunta mais premente atiça a sua curiosidade: “Quem é esse moço?”.

A mulher mais velha do Araçá
Maria Braulina Marques tem 90 anos de idade e é, no censo informal dos moradores do lugar, a mulher mais velha do Araçá. Divide o posto de anciã do bairro com Antônio Silvino, facilmente visto apreciando os entardeceres de sua janela no segundo andar de casa e fumando o inseparável cachimbo. Filha de Braulina Alexandrina e José Henrique Caetano, Maria se casou aos 21 anos de idade com Manoel Francisco Marques e teve oito filhos. Viúva, mora em uma residência térrea em frente ao cais do Araçá, tendo a companhia dos filhos Lenilda Maria Marques, Lauri e Zeli Manoel Marques. Há cinco anos, convive também com o mal de Alzheimer, doença neurodegenerativa que afeta a memória e a capacidade cognitiva, levando a pessoa a se tornar uma página em branco. De tudo o que viveu e conheceu, dona Maria vai aos poucos se despedindo. Conversar com ela numa tarde de sábado de agosto foi uma tentativa de preservar alguns fiapos de sua memória e longa vivência. Esforço compartilhado por filhos e netos, que a tenham para sempre na lembrança.

 

(*) Entrevista concedida em 25 de agosto de 2018.

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