A histórica igreja Bom Jesus dos Aflitos já tinha mais de 110 anos quando Izaul Neves Guerreiro nasceu, em agosto de 1926. Naquele tempo, porém, não era exatamente como é hoje: tinha assoalho e altar de madeira, não havia a torre do campanário e a sacristia era menor. O sino ficava distante uns 500 metros em direção ao centro de Porto Belo, no Morro da Estação (na época, Morro do Sino). Ela só ganharia o feitio atual em 1965, após ampla reforma promovida pelo padre Augusto Zucco.
A vista que se obtinha do ponto onde ela se encontra também era muito distinta. Em frente à igreja, onde hoje há uma marina seca, estendia-se um vasto gramado que descia até a praia, ao final do qual ficava um pedestal e a cruz. A estrada passava ali por baixo, na faixa de areia, defronte à salga que foi construída nos anos 1940. Somente por volta de 1970 que a avenida principal recebeu o traçado que vemos hoje.
Diferente da presente ocupação demográfica, com inúmeras casas e até alguns prédios de apartamentos, existiam poucas moradas no entorno, que seu Izaul, aos 91 anos de idade, lista com a precisão de uma boa memória: João Leandro, Manduca, Zeferino (“montou uma fábrica de não sei o quê. Depois, ela pegou fogo”) e Cândido Samagaia, que foi intendente da cidade — cargo equivalente ao de prefeito — eram os moradores das imediações. Quase em frente ao cemitério, onde atualmente dançantes Jacks Sparrow seduzem turistas na temporada, vivia o casal João Benedito e Maria da Cunha Guerreiro.
João era lavrador, atividade que exercia em terras de Porto Belo e na Praia Grande, atual bairro de Bombas, na vizinha Bombinhas. Plantava arroz num vargedo nas proximidades do atual supermercado Koch e uma série de outras culturas nos morros de Bombas e do Sino (mandioca, batata, banana, batata-doce, cana-de-açúcar). Enquanto seu João cultivava, Maria cuidava da casa e dos filhos, entre eles Izaul. Ao todo, tiveram onze, dos quais um morreu cedo. Ficaram sete homens e três mulheres.
“Eu era estimado do pai”
— Esse aí é malandro — diziam os irmãos Aurélio, Hermínio e João de Izaul. É que, enquanto uns iam para a roça e outros pescavam, o irmão preferia, digamos, empreender. Usava uma junta de bois para carregar encomendas de lenha e areia, ocupação que não tinha tanta frequência, mas que lhe rendia um dinheiro. De resto, fugia ao serviço, pois contava com a cumplicidade de João Benedito: “Eu era estimado do pai”.
Dos irmãos, só Maria das Graças ainda vive. Nascida numa sexta-feira da Paixão, ganhou o apelido de “Santa” porque, segundo Izaul, operava milagres. Quando menina, correu a notícia de que ela curava (possivelmente espalhada pela própria mãe, que insistia para que ajudasse os doentes que apareciam). “Um era quebrado do umbigo, outro das partes, outro era a mão. Então, ela botava a mão pra fazer o bem. E fazia”, garante o irmão.
Apesar da assumida indolência, Izaul Guerreiro cumpriu uma longa cota de trabalho. Foi operário de estrada de ferro em Rio do Sul, garçom e tintureiro em Blumenau e funcionário de uma fábrica de peixes em conserva em Bombinhas. Porém, o que mais fez na vida foi jardinar e cozinhar empadinhas — sua grande contribuição para a culinária local.
A jardinagem veio primeiro e foi consequência das entregas de areia que fazia. De acordo com seus cálculos, foram dezoito anos cuidando de jardins. Tinha clientes em toda a cidade, quase 80 casas, algumas das quais ele também zelava: “O que eu planto não morre, nasce todo ele”, declara com orgulho, usando de exemplo o próprio quintal, repleto de hortaliças e árvores frutíferas.
Outra consequência das entregas foi o casamento. Izaul estava com 24 anos de idade e costumava dar carona, em seu carro de boi, a Maria Tomázia Stein, jovem de quinze, a caminho da escola. Também a encontrava na igreja matriz, onde a menina era uma das “filhas de Maria”. Coberta com o véu, sempre que o via ela se aproximava para conversar. O rapaz, que conhecia seu Ludovico, pai de Maria, certo dia comentou: “Queria noivar com a sua filha, gosto dela faz tempo”.
“De fato, eu namorava muito”
A mãe, também Maria, torceu o nariz: — É um vagabundo! “De fato, eu namorava muito. Gostava dela, mas tinha duas namoradas pertinho, e ela sabia”. Mesmo assim, tão logo Maria completou dezesseis anos, oficializaram noivado e, um mês depois, casaram, com cerimônia na igreja e uma discreta festa realizada na casa de um vizinho, da qual Izaul cuidava. O dono, José Andriani, foi um conhecido cidadão de Tijucas, proprietário da fábrica de telhas Aranha. Morreu nos anos 1980, aos 79 anos de idade.
Os recém-casados mudaram-se para a casa de João Benedito. Por essa época, início dos anos 1950, Izaul ainda jardinava, mas também tinha um bote, com o qual pescava camarão, e ocasionalmente arranjava emprego fora da cidade. Depois de um tempo, ele ergueu sua primeira casa, uma improvisada construção cercada de bambus. Quando um dos irmãos retornou, vindo do Mato Grosso do Sul, emprestou-lhe dinheiro para adquirir uma casa de madeira, que foi desmontada e trazida de Florianópolis. Com ajuda da esposa, pôs a nova morada de pé: “Ela segurava as tábuas e eu pregava”.
Viveram um tempo de modo precário, até que um sujeito de Blumenau se estabeleceu na vizinhança e fez uma nova casa para ele, instalou luz elétrica e tudo mais. Porém, as coisas só começaram a melhorar quando Izaul aprendeu a fazer empadinhas, no final dos anos 1970.
Essa história começou com um casal de São Paulo, José e Sônia, que veio passar o verão em Porto Belo. Instalaram-se no terreno em frente à igreja, que foi escavado para a criação de um camping. O local, porém, era um lamaçal. Vislumbrando a possibilidade de uma estada mais confortável no pequeno gramado em frente à casa de Izaul, o paulistano foi procurá-lo. Pediu permissão para armar sua barraca no espaço modesto e foi atendido. A partir de então, fizeram amizade: “Ele ia na venda comprar um quilo de carne, comprava dois; um pra mim e um pra eles”, relata o anfitrião.
Certo dia, diante do fracasso de uma pescaria em que ambos estavam empenhados, José propôs: — Vamos fazer umas empadas. — Ele e Sônia assumiram o fogão, mostraram como se fazia e promoveram uma pequena experiência: entregaram a primeira fornada de trinta empadinhas para que Neide, uma das filhas de Izaul, saísse a vender. Foi rápido: as empadas fizeram sucesso entre o pessoal que veraneava nas redondezas. A segunda fornada, claro, satisfez a turma da casa. Sônia, então, profetizou:
— O senhor não vai mais ser jardineiro.
Percebendo que o negócio podia, com efeito, vingar, Izaul apostou suas fichas. Com a ajuda da esposa e dos filhos (o casal teve cinco; Mazilda, a mais velha, nasceu em 1959), construiu a boa reputação do quitute da Casa das Empadas. A cada verão, mais gente ficava conhecendo o estabelecimento, estrategicamente localizado na rua lateral ao camping (batizada de João Benedito Guerreiro), próximo da praia, local que, devido ao cais existente, se tornou ponto de saída de turistas em direção à ilha de Porto Belo, levados até lá por escunas. Em consequência, a Casa das Empadas virou ponto de referência e parada obrigatória pós-banho de mar para gente de todo canto do Brasil e países vizinhos. Nos bons tempos, quando a praia do centro era muito mais frequentada do que é hoje, estacionavam ônibus de turismo às pencas. O pessoal precisava se virar nas panelas, pois, tão logo voltavam da ilha, os visitantes paravam para recolher as encomendas feitas na saída. “Fizemos mil e poucas empadas num dia”, lembra o cozinheiro.
Seu Izaul não faz segredo da “receita da riqueza”, como Sônia a intitulou: 500 gramas de margarina, 5 ovos, 15 colheres de água e trigo à vontade. No entanto, há certos detalhes na escolha dos ingredientes que fazem toda a diferença. Em razão disso, assegura que não há quem faça uma empada como a sua. Nem Elisa, a filha que atualmente administra a Casa das Empadas, escapa ao seu rigoroso controle de qualidade.
“Fizemos mil e poucas empadas num dia”
Izaul tocou o negócio por quase quarenta anos. A cada temporada, chegava a assar 200 mil desses pequenos salgados, os quais tanto vendia quanto distribuía entre conhecidos e vizinhos (“dei tanta empada que vocês nem imaginam”). Mas o dinheiro que ganhou foi suficiente para ajeitar a vida da família. Conseguiu certa estabilidade financeira, adquiriu imóveis e garantiu a tranquilidade de hoje. Um deles é a casa em que vive há cerca de doze anos, na localidade do CTG, aonde se refugiou quando a saúde de Maria deu sinais de alerta.
Assim, arrendou o estabelecimento. Mas retomou o ponto um mês depois, incomodado com o fato de que, supostamente, os clientes reclamavam de queda na qualidade do produto. Maria, porém, não podia mais. Decidiram largar de vez, deixando o comando para uma senhora que era empregada do casal. Junto com o marido, ela dirigiu a Casa das Empadas até coisa de um ano atrás, quando foi substituída por Elisa.
Dona Maria faleceu em 2015, aos 74 anos de idade, vítima de complicações decorrentes da diabetes. “Vivemos 65 anos num amor grande”, diz seu Izaul, que há seis meses encontrou, passando em frente à sua casa, um novo “anjo da guarda”.
Natural de Porto Alegre (RS), Berenice Oliveira, de 65 anos, está há um ano em Porto Belo. Veio ajudar a cuidar dos netos. Seu filho, o pedreiro Geovane, tem um casal de crianças. Ele mora no CTG desde maio do ano passado. Os outros dois filhos de Berenice vieram depois: Amanda e Gilberto, que tem necessidades especiais. Cozinheira de profissão, levava os meninos para a escola quando ouviu um galanteio do vivaz Izaul. Ele, uma vez tendo conquistado o interesse da viúva, produziu-se para pedir a mão dela em namoro ao filho. “Mês que vem, a gente casa”, ela informa.
Tamanha disposição não coincide com a descrição que seu Izaul faz de si. “Sou muito doente”, afirma, enumerando, para justificar, a pressão alta, a surdez parcial (“tem que falar de frente pra mim, senão não escuto”) e uma tendência dos olhos a lacrimejarem. Menciona de passagem um problema na próstata, mas a rotina não é de quem está com o pé na cova: dia sim, dia não, logo pela manhã, o nonagenário caminha 1,5 quilômetro até a Casa das Empadas, para ver como Elisa vai mantendo a tradição familiar. Também passeia de bicicleta pelo bairro, visitando amigos. Recentemente, esticou a caminhada até o centro de Porto Belo, que não via fazia bom tempo. Gostou das mudanças ocorridas (menos da nova Praça da Bandeira: “Plantaram coisa velha, que não vai prestar de nascer”).
Diariamente ele se ocupa da horta e do minúsculo pomar. “Trabalho o dia todo, capino, boto veneno. O dia todo de cócoras”. Diz-se um “economista”, mas é pródigo quando se trata de tomar uma cervejinha. “Essa vem toda vida” (Ana Maria, a neta, confirma). Até pouco tempo, batia ponto vespertinamente no Bar do Bento, para jogar canastra. Quando mais jovem, seu passatempo era outro: promover brigas de galo. Foi famoso por isso em toda a região, mas um dia sofreu um estranho revés: o padre da época recriminou-lhe a prática e ele perdeu seus três lutadores de penas de uma só vez. “Praga de padre pega”, conclui, com malícia, o sorridente Izaul.
(*) Entrevista concedida em 23 de outubro de 2017.
Meu pai nasceu em Porto Belo ,visitei muito essa cidade, atualmente minha irmã mora aí