Última sexta-feira de julho de um atípico inverno. Choveu brevemente no meio da manhã, é só. Pouco para aplacar a estiagem dos últimos dias. A previsão promete mudanças na próxima semana, mas seu Amaro está reticente. Encostado na amurada do terraço de sua casa no Araçá, ele aproveita o calor do sol que logo mais vai se despedir. Um vizinho relata os problemas que o filho enfrenta para completar a tripulação do barco. Reclama que, hoje em dia, é difícil arranjar pessoal confiável. “Eles pegam o vale, embarcam a bolsa com as roupas, mas, quando vai ver, tá cheia de papel. E eles não aparecem”, explica seu Amaro o golpe mais comum.
No outro lado do terraço, dona Marta cumpre o seu ritual: iluminada pela luz dourada do arrebol, segura na mão esquerda o crucifixo, que movimenta em direção à moça que está sentada na cadeira diante dela. Os lábios murmuram a prece que herdou há muito tempo de sua mãe — e esta de sua avó. Nesta tarde, apenas duas pessoas vieram ao seu “consultório” de benzedeira afamada, mas é comum aparecer muito mais. No entanto, dona Marta está preocupada: não sabe quem, depois dela, assumirá a sua tarefa.
Ainda que o mundo esteja caminhando ao reverso, como quem encena uma reprise de seus piores momentos (racismo, intolerância, medo e fanatismo), a ciência mira o futuro. Novas pesquisas e avanços tecnológicos permitem ao homem sonhar com o dia em que nenhuma doença será invencível. Uma cura definitiva para o câncer, quem sabe? Longe dos laboratórios, porém, há um território nebuloso onde grassam males sem corpo nem explicação, contra os quais nossa boa medicina cala perplexa e o único alívio vem do saber popular — desse conhecimento ancestral compartilhado por diferentes culturas e baseado no entendimento da natureza e na crença de que uma força superior comanda nosso destino. Hábeis no preparo de ervas e conhecedoras de rezas que proporcionam a cura, as benzedeiras são representantes dessa tradição. Passada de geração para geração desde os tempos coloniais, a arte de benzer persiste. Mas, como tudo o que é tradicional, corre o risco de desaparecer.
Martinha Pinheiro Passos tinha uns dez anos de idade quando seu aprendizado começou. Aconteceu ao natural. Maria Martinha Pinheiro chamava as duas filhas e dizia: “Venham cá, vou ensinar vocês a benzer”. Mais nova, Rosa Maria refugava. Martinha também tinha ganas de escapar, mas, como a mãe insistisse em passar o que sabia adiante, ela aquiesceu. Assim, Maria ditou as orações à filha mais velha, que anotou tudo num caderno. “Num instantinho, eu decorei aquilo tudo”, diz dona Marta. Após três dias de leitura, já sabia benzer — mas só foi testar a eficácia desse tratamento muito tempo depois, quando já morava no bairro do Araçá, em Porto Belo.
Isso foi há 33 anos: Rafael, seu terceiro filho, teve arca caída (que os médicos creditam a uma síndrome dolorosa relacionada ao apêndice xifoide) aos quatro anos de idade. Martinha recorreu às rezas de dona Maria e conseguiu curá-lo. Ficaria por isso, pois ela não queria dar publicidade do feito. Fábia, sua filha do meio, resolveu promover os dons da mãe, espalhando a notícia. Nunca mais deixou de chegar gente.
Marta (“eu não gosto de Martinha”) nasceu na localidade de Braço de Camboriú, no chamado Camboriú Velho, em 18 de novembro de 1947. “Era lá no mato mesmo”, afirma. José Sérgio e Maria Martinha Pinheiro possuíam chão farto naquela região: “Eu lembro que tinha a casa e depois já tinha o cafezal. Passando debaixo do cafezeiro, tinha um pasto grande atrás”, descreve. Havia também uma plantação de mandioca, umas cabeças de gado e dois engenhos — um de farinha e outro de açúcar — que pertenciam a Germano Silvério da Silva, pai de Maria.
José e a esposa tiveram quatro filhos: Marta, Rosa Maria, João Sérgio e José Pinheiro Filho. Primogênita, dona Marta é a única que restou. Último a se despedir, José Filho morreu de câncer em 2016, aos 59 anos de idade. Também no ano passado, dona Marta e seu Amaro viveram dias de angústia em razão dessa mesma doença. Patricia, hoje com 43 anos de idade, recebeu o diagnóstico de carcinoma gástrico. Havia oito anos, Amaro tinha superado um tumor nos lábios, mas desta vez as perspectivas eram sombrias. Durante longas madrugadas, o casal se ajoelhou diante da tevê, sintonizada na Canção Nova, rezando pela filha mais velha. Após um longo e doloroso tratamento, Patricia se curou.
“Quando sobrava um tempo, a gente brincava. Tinha as vizinhas, as primas que moravam perto. Brincava de ratoeira, de pegar, coisas dos antigos”
Nos meses de julho, Marta era enviada para a casa de uma tia, na comunidade vizinha do Cerro, para cuidar das três crianças dela, enquanto a tia ajudava no cultivo de arroz. “Depois, quando terminavam as férias, eu voltava pra casa. De tarde eu ia pra escola (ela estudou até a quarta série, que era todo o ensino de que se dispunha) e de manhã eu ajudava a mãe. Eu socava arroz, café, fazia essas coisas. E, depois, quando sobrava um tempo, a gente brincava também. Tinha as vizinhas, as primas que moravam perto. Brincava de ratoeira, de pegar, coisas dos antigos”, lembra.
Aos doze anos de idade, tudo mudou. Martinha saiu para trabalhar de empregada doméstica na Vila de Camboriú. Arrumou emprego na casa de Ivo e Lucinira Mello Rebelo, ficando com o casal durante os quatorze anos seguintes. Praticamente, só saiu de lá quando se casou.
Sete meses mais velho do que ela (completou 70 anos em março), Amaro Passos ganhava a vida como pescador no litoral paulista. De volta à casa dos pais durante um período de folga, foi a um baile ver as mocinhas se divertirem — sob o olhar atento das mães e das tias destas. Marta, que adorava dançar, estava lá. Foram para a pista juntos, conversaram, e saíram da função com um compromisso assumido. Ele retornou à pesca, mas agora, quando voltava, a visitava na casa dos pais.
O casamento se deu uns dois anos depois, na Paróquia do Divino Espírito Santo, em Camboriú, e já dura 44 anos. No início, o jovem casal se mudou para a Vila Real, em Balneário Camboriú. Viveram um tempo em Santos (que Marta detestou) e retornaram a Balneário. Amaro mantinha sua rotina de pescador, de longas ausências, enquanto ela, já mãe de duas filhas — Patricia e Fábia, esta nascida em 1975 —, trabalhava como cozinheira de hotel.
“Quando o mar tá grosso, aqui dá medo”, revela dona Marta. A vista que se tem da janela não sugere tal sentimento: estamos quase em cima do costão e, daqui, a ilha João da Cunha parece estar a poucas braçadas de distância. Uma leve ondulação embala, lá embaixo, a chata de seu Amaro, amarrada às pedras por um cabo. Ao longe, envoltos numa névoa quase mágica, se veem os prédios de Itapema. É um cenário de causar inveja, mas, para a proprietária, não há idílio: o embate interminável de água e costão a perturba.
Ana Marta, sua neta de cinco anos, está num quarto ao lado da sala, assistindo à tevê. Ela é uma menina morena, com os volumosos cabelos encaracolados presos num rabo de cavalo. É tempo de férias na escola e a menina aproveita para passar a semana na casa dos avós. Vez ou outra ela aparece na sala, senta no sofá e observa a entrevista. A câmera que filma a conversa enquadra as duas: a avó, falante, e a menina, se encostando nela, como quem reclama a atenção perdida para os repórteres enxeridos. Curiosa, ela pergunta: “Pra que esse microfone?”, olhando para o aparelho preso à blusa da avó.
No período em que trabalhou na casa de Ivo e Lucinira, Martinha aprendeu a cozinhar. Não apenas levava jeito, como gostava — tanto que, quando uma amiga sua que organizava festas de casamento precisava de uma mão, lá estava ela. A isso se seguiram alguns cursos de culinária e estava pavimentado o caminho profissional. O primeiro emprego na área foi na cozinha do Gran Turismo Hotel, em Balneário. Em seguida, manejou as panelas do Hotel Marambaia e do restaurante Macarronada Italiana. Quando se mudou para Porto Belo, em 1984, Marta passou por quase todos os restaurantes da cidade (além de um em Bombinhas). Uma década depois, ingressou no serviço público, atuando como merendeira na escola Francisco Manoel Marques, no bairro onde mora. Aposentada, volta e meia aceita alguma encomenda de quitutes para festas.
Cumprir jornada dupla, na cozinha de hotéis e em casa, além disso cuidando de três filhos, não era fácil. Assim, quando um amigo informou que havia uma oportunidade de trabalho como caseiros de um solar de veraneio no Araçá, eles resolveram arriscar. Amaro, que trabalhava para a companhia de pescados David Gregório, de Itajaí, deu baixa e a família partiu para o novo destino.
Os dois anos seguintes foram intensos. Na enorme residência localizada na subida do morro do Caixa D’Aço (de fora, apenas as palmeiras que se sobressaem além do muro alto são visíveis), o casal deu duro. Nos finais de semana, a casa vivia lotada de parentes do proprietário, que não davam descanso; era trabalho desde o início da manhã até as primeiras horas da noite. Por outro lado, o ordenado era pouco. Sem contar que, vivendo nos domínios do patrão, os Passos não se sentiam à vontade para receber suas próprias visitas. Assim, desistiram do trabalho, mas não de viver no Araçá. Alugaram uma casa (que o proprietário jamais cobrou) próxima do atual endereço, onde viveram por doze anos. Moraram uns anos em Bombas, é verdade, numa propriedade que lá compraram. Mas voltaram, ocupando o terreno sobre o costão que um antigo patrão deu-lhes de presente. Havia uma pequena casa, que faz ano e pouco foi reformada.
“São um povo muito humilde”, elogia dona Marta, que se sentiu acolhida pela vizinhança tão logo chegou ao Araçá. A relação só estremeceu quando um incidente colocou a pequenina cozinheira em atrito com os adeptos de uma controversa tradição.
Condenada, criminalizada e perseguida, a farra do boi se tornou uma manifestação moribunda. Ainda é praticada, às escondidas (ou nem tanto), em algumas localidades do litoral catarinense. No Araçá, inclusive. Mas já não causa o furor que causava nos anos 1980. Naquela época, durante a Semana Santa, soltavam bois às dúzias. A comunidade inteira delirava. Dona Marta, não; ela morria de medo. E não podia levar as filhas para a escola, no centro de Porto Belo, distante quase 3,5 quilômetros de caminhada, pois corria o risco de topar com um animal em fuga cega pela estrada. Numa ocasião, as crianças ficaram dezessete dias sem aula. Marta ficou revoltada, esbravejou contra a incompreensível tradição. A queixa alcançou ouvidos raivosos. Em represália, apedrejaram sua casa, e os mais exaltados foram até a sua porta tirar satisfações. “Foi uma tristeza muito grande”, recorda.
Mas não há amargura que dure no coração de Marta. Com o tempo, ela aprendeu a lidar com a duvidosa brincadeira: a cada nova Quaresma, quando batiam à sua porta pedindo contribuições, pedia que Amaro desse o dinheiro e despachasse logo a malta.
“Não tira foto disso, menina!”, dona Marta repreende, com delicadeza e um sorriso no rosto, quando a fotógrafa Isadora Manerich aponta a câmera para a mesinha de canto sobre a qual estão uns poucos santos. Aos pés destes, há também uma bandeja com pedaços de papel em que estão anotados nomes de pessoas que Marta benze à distância. A dona da casa prefere ser discreta em relação à sua devoção, visto que recebe gente de todos os credos — evangélicos, inclusive. Assim, mantém os santinhos camuflados por um vaso em respeito às visitas.
O gravador já foi desligado, mas permanecemos um pouco mais, esperando pelo casal que combinou trazer seu bebê de quatro meses para benzer. Será uma boa oportunidade de registrar a benzedeira em ação. Enquanto o relógio se move sem pressa, aproveitamos para admirar o belo cenário emoldurado pelas janelas. Dona Marta conta que será a segunda sessão daquela criança (é preciso benzer três vezes seguidas para melhor resultado). A queixa dos pais foi que ela não dormia bem, chorava a noite inteira. Depois da primeira visita, melhorou sensivelmente. Neste dia, porém, eles não apareceram. Tivemos sorte, no entanto, pois outras duas pessoas vieram — bem a tempo, uma vez que o sol já começava a se esconder detrás da João da Cunha e, após o pôr do sol, não se deve benzer.
No município vizinho de Bombinhas, uma corretora de imóveis rói as unhas: está prestes a fechar um negócio lucrativo, mas há muito “olho grande” ameaçando a transação. Ela, então, toma a medida mais sensata: liga para dona Marta e encomenda uma oração.
Pedidos dessa natureza não surpreendem a benzedeira. Donos de imobiliária buscam-na para ir benzer seus estabelecimentos, outros solicitam que interceda em favor de algum negócio crucial. Normalmente, dá certo. Não faz muito tempo, alguém pediu ajuda para destravar a venda de um imóvel que não encontrava comprador havia dois anos. Foi tiro e queda.
O famoso mau-olhado, de fato, lidera o ranking de pedidos de benzimento. Mas a lista de problemas que exigem sua atenção é enorme: carne rasgada, insolação, dor de dente, zipra, a já mencionada arca caída, febre, engasgue, cobreiro, vermes e verrugas. Crianças assustadiças e anêmicas (quando se diz que estão sendo importunadas por bruxas) também são benzidas com sucesso. E ainda chás para depressão e simpatia para bronquite.
Crendice de gente simplória? Até médico já capitulou, ainda que inicialmente cético. Depois, diante da evidente melhora de sua filha, não havia como questionar o acerto da decisão da esposa. Virou cliente. Desde então, sempre que um caso além de sua capacidade chega até a clínica, prescreve o endereço da benzedeira.
Naturalmente, aliviados de sua dor ou dificuldade, muitos se dispõem a pagar. Dona Marta rejeita: “Não sou em quem faz a obra. Quem faz a obra é Deus”. Mesmo assim, em algum momento, se vê obrigada a aceitar o agrado: toalhas de mesa, louças, cobertores e até dinheiro, quando um corretor feliz emplaca uma venda.
Na casa de seu Ivo, uma legenda reinava: o PMDB. O patrão era doido por política e, de certa maneira, contaminou Marta com sua paixão — e ela se demonstrou uma aguerrida militante. Em 1993, durante a campanha do médico Sérgio Luiz Biehler à prefeitura de Porto Belo, dona Marta corria a noite inteira atrás de votos. Também acorria a Camboriú para auxiliar o antigo empregador sempre que havia “colas-brancas” a combater. Nessas ocasiões, levava consigo o filho mais novo e ficava fora quinze, vinte dias, deixando as filhas com seu Amaro, que não compartilhava do seu entusiasmo. Filiada ao partido, não perdia uma reunião. Depois que entrou na folha de pagamento da municipalidade, porém, desiludiu-se. Hoje em dia, não quer mais saber disso: “Me deixa enojada”.
“Vovó, já são cinco horas?”, quer saber Ana Marta. A menina aguarda o momento em que o tio, Maurílio, virá buscá-la. Ela vai passar o fim de semana na casa da tia, Patricia, onde há crianças com quem brincar. Acostumada à presença da neta, dona Marta tentou convencê-la a ficar.
Enquanto isso, seu Amaro está entretido com seus afazeres no rancho que fica embaixo da casa. No fim de tarde dourado deste lugar paradisíaco, a canoa que balança suavemente no mar indica que o marido de dona Marta ainda não se despediu da pesca.
“Assim como agora eles precisam, mais tarde o povo pode precisar”
A semana que antecede a Páscoa — e que antes trazia o temor dos bois —, é uma época de trabalho extra para a abnegada benzedeira. Na Sexta-feira da Paixão, dona Marta sai da cama às 5h, toma um banho, se acomoda no sofá e reza. Não come nada durante o dia inteiro. Às seis horas, começa a romaria. Seu Amaro, certa vez, contou quantos vieram na sexta-feira santa: 68.
“Faço de coração”, dona Marta assegura. E não há porque duvidar, uma vez que toda a sua rotina diária acaba sendo dificultada por esse ofício voluntário. Às vezes, fica impossível assumir algum outro compromisso e, não tivesse imposto algum limite, não teria tempo sequer para cozinhar. Ainda assim, toda quarta-feira ela dá expediente na igreja matriz de Porto Belo, onde participa de sessões de imposição de mãos, emprestando seus dons de cura a quem precisa: “Tem pessoa com cada pepino que vocês não fazem ideia”, garante. Não é incomum que casos mais complicados repercutam em seu corpo, fazendo com que tenha enjoos, mal-estar. Também por isso, ela não benze a maioria dos males dentro de casa, para que a negatividade não macule seu lar.
Apesar de tudo, dona Marta se sente bem pelo bem que faz. Esse sentimento, porém, se mistura com outro: a preocupação de que seu legado se perca — “porque, assim como agora eles precisam, mais tarde o povo pode precisar”, pondera. O tempo não é um aliado, tampouco a família, uma vez que as filhas — repetindo a incerteza que ela própria experimentou — não se sentem confortáveis em perpetuar a tradição. Por isso, a benzedeira não faz questão de parentesco, tudo o que precisa é de uma alguém disposta a seguir adiante com sua obra. Claro que há um requisito fundamental: acreditar.
— Se não tiver fé, não resolve — estabelece a mestra.
(*) Entrevista concedida em 28 de julho de 2017.
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