Era ainda o início de 2020 quando Johannes, 39 anos, e Talita, 36, deram uma cartada ousada. Fazia algum tempo que a propriedade onde moram, na estrada que vai para o morro de Zimbros, estava pequena para a produção cerâmica dele. As caixas se acumulavam em todo canto. Acharam uma boa, portanto, alugar uma casa na avenida, que serviria de oficina e ponto de varejo. Encontraram um local adequado, mas o investimento preocupava. Seria um passo e tanto. Depois de titubear um pouco, bateram o martelo.
Afinal, o que poderia dar errado?
Notícia de 17 de março de 2020:
Mal puseram as mãos nas chaves do imóvel, o comércio baixou as portas. Nas saídas da cidade, barreiras controlavam quem entrava e quem saía. Começava uma crise que, passados ano e meio, segue moendo a economia. Empregos se foram, mais 600 mil pessoas deixaram de existir no Brasil, a inflação cresceu e o dólar disparou. Ninguém poderia prever o que vinha pela frente, mesmo assim o timing não foi dos piores. Porque, embora ficassem sem energia elétrica pelos primeiros 40 dias (pois, parodiando Raul, o cara da Celesc não estava lá), com a demão na parede pela metade (o pintor também sumiu) e sem festa de inauguração, as coisas não foram tão mal quanto se podia supor.
“O pessoal em casa, cuidando mais da casa, as vendas online melhoraram, e nisso o ateliê foi tomando forma”, explica Johannes, que tem sobrenome Lacerda e apelido “Kid” — por dois motivos: o nome de alemão ser complicado e o fato de ter sido o mais novo de sua turma num momento em que “Kids”, o filme, era febre. Com a internet bombando e uma divulgação esperta no Insta, o negócio deslanchou. Kid virou santeiro reconhecido. E, como bom santo de casa, seu milagre não acontece em Porto Belo.
Filho de advogada que virou artista e de publicitário, nascido no Rio Grande do Sul, Johannes chegou na cidade pelos anos 2000. Não foi uma mudança recebida com entusiasmo, para um cara no meio da adolescência, saído de Passo Fundo, com destino a um possível fim de mundo. Mas que tinha praia. Começo estranho, o novato foi se enturmando entre os nativos bem aos poucos. Até que, citando Gessinger, Kid conheceu uma guria. Do relacionamento com Sabrina nasceu um garoto. E ficou nisso. História manjada, desfecho nem tanto: Johannes requereu a guarda, ficou com Gabriel.
Pai solteiro aos 21 (o segundo pai dele, Miguel, mandou “matar essa no osso do peito”), Kid voltou a Passo Fundo, mas fez o caminho inverso um ano depois. Cursou o Terceirão, entrou na faculdade de Design Industrial, foi à luta. Trampou aqui e ali. E, numa festa, conheceu a Talita. No segundo encontro, um inusitado “date” a quatro na pastelaria da Loiva: Johannes e o filho; Talita e a filha Luna, cuja idade é a mesma de Gabriel.
Romance ok, mas as contas continuavam pingando. Por sorte, Johannes tinha um plano. Melhor ainda: tinha uma ajuda para alavancar um plano. Foi assim: fazia uma cara que ele, nas horas de ócio, brincava de modelar no ateliê de Patrícia, sua mãe. Antes disso, já tinha experimentado trabalhar com madeira, fazer colares com pedras brasileiras e vender canecas personalizadas em feirinhas na cidade. O que entrava até ajudava a bancar as despesas, mas nada que pudesse aguentar o rojão. Até que o interesse de um cliente de sua mãe por suas peças de argila acendeu uma lâmpada: aquilo podia ser mais que bico.
Só que tinha um detalhe: não dava para ficar montando barraquinha e esperar que o pessoal dos cruzeiros enfiasse seus santos de barro (sem ironia) em uma mala para viagem. Não haveria milagre que os fizesse chegar ao destino inteiros. Além disso, na hora que caía um pé d’água, era um Deus nos acuda: enquanto as senhorinhas dos bordados embalavam lepidamente suas coisas e vazavam da praça, Kid passava o maior apuro. Enfim, aquilo não tinha como dar certo. Mas aí ele trocou uma ideia com o pessoal do Sebrae e começou a delinear um plano.
— A gente viu que tinha um produto bom, tinha aceitação do produto, foi automático.
E rápido. No início, ele trampou loucamente nas horas de folga, enquanto Talita seguia no escritório de Contabilidade que era o emprego dela e estudava para se formar. O artista mascateou suas obras em Floripa, participou de feira de decoração em Olinda, fez bons contatos, colocou peças em redes varejistas e divulgou na internet. Quando as coisas engrenaram, Talita largou o escritório e a família passou a viver só de cerâmica.
E isso tudo nos coloca de volta naquele início de 2020. No que poderia ser um tremendo desastre e se mostrou um acerto, já que a arte de Johannes pede espaço para crescer. Mas não para cativar o público local, essa ilusão nenhum dos dois tem. Mesmo que haja uma porta aberta para a avenida, a placa recém-instalada sobre o muro convidando a uma visita, apenas de quando em vez um passante ocasional, em estada na cidade, resolve entrar (quando tem fila de carros na avenida, eles já aprenderam, não há chance de movimento). Justiça seja feita, a lojinha do casal até garante as contas, mas principalmente porque muito cliente de fora se anima em chegar para conhecer “o artista em seu habitat”. Sim, Johannes se tornou uma espécie de atrativo local.
O que bota rango na mesa mesmo é a rede de representantes criada no circuito de feiras e, cada vez mais, a partir da divulgação na web. Lojas badaladas de artigos de decoração colocaram as casinhas e santos em destaque na pauta e a saída tem sido grande. E tem casinha e santo em tudo quanto é lugar. A região Sudeste é o principal mercado, onde muita gente compra achando que é arte do Nordeste. Muito lojista e até mesmo uma jornalista do programa de Fátima Bernardes já caíram nessa gafe.
Se o próprio Kid não esconde sua admiração pelo manuseio do barro que se faz naquela região, seu trabalho segue um caminho distinto. Tampouco pode ser considerado cerâmica catarina, no sentido de que reproduz um estilo marcante na região. Na verdade, seus santos narigudos e casinhas coloniais ainda carecem de definição.
A propósito, as casinhas são o “pão quente” de sua produção. Saem aos montes e demandam ritmo de produção semi-industrial, tarefa que Talita assumiu por completo e desenrola com precisão contábil. Uma sobrinha do marido também foi escalada para dar conta do processo, que envolve muita modelagem e pincel.
Aliás, tudo começou com uma casinha. Tal qual a Moedinha Número 1 do Tio Patinhas, a primeira da fortuna do personagem de Carl Barks, a Casinha Número 1 de Johannes o acompanha até hoje, como talismã. Enquanto faz a analogia, sorri apontando para a peça colada acima da porta de entrada, o primeiro item instalado no novo ateliê.
Quando passou a produzir as casinhas, Kid percebeu que havia um diferencial em relação ao trabalho de outros artistas. Inspiradas nas moradas da gente do litoral, especialmente as que via durante os verões que passava na cidade de Laguna, pescando referências que contribuíram para a formação da sua identidade artística, as peças eram pintadas em cores caiadas, como ocre, verde claro e vermelho. As cores mais vivas que se sobressaem atualmente vieram depois, quando as pessoas começaram a pedir um colorido a mais.
Não por conta do aspecto religioso e, sim, pela imagética da coisa, a arte sacra também é uma paixão. Pouco depois de começar a modelar, então, surgiram os santos. Johannes meteu logo um narigão de respeito e criou uma marca registrada, uma linha que permite identificar a autoria das peças logo de cara.
Como ele não trabalha com o folclore catarinense, a pesca artesanal é o traço da cultura local presente na produção. E, pelo menos no ateliê do santeiro, pescadores e santos têm bastante semelhança: o são Chico sai com a cara do velhinho que joga tarrafa ali no Baixio. Por outro lado, da observação dos matizes que compõem a Costa Esmeralda vem a inspiração para as cores que utiliza nas peças. “Se tu olhar ali, vai ver dez tons de verde, dez tons de azul”, explica.
Trabalhar com barro tem um quê de alquimia, o que Johannes vem tentando dominar. Sem uma base teórica, começou se aventurando ao melhor estilo tentativa e erro, mas agora se dedica a estudar para aprimorar sua técnica de manipulação do material. Claro que a mãe, ceramista figurativa, foi determinante nessa construção.
— A minha mãe foi a minha mestra, né? Ela que me ensinou o que eu sei. Eu só aumentei a produção, mas a base da modelagem é a mesma dela.
Esse salto na produção, porém, tem limite. Tanto que ele se recusa a mecanizar o trabalho para não perder a essência do ofício, que é 100% manual. Receia até que uma quantidade gigante de peças espalhadas país afora diminua o sentido de exclusividade que carregam. Mas esse talvez seja o artista falando. “Kid Santeiro” (apelido nosso, não que alguma vez ele tenha usado) às vezes se alterna entre essa personalidade, a ser alcançada (“sou novo ainda”), e a de empresário, que precisa jogar casinha no mercado para garantir o orçamento doméstico.
São as contradições de quem, como ele diz, vive do que produz com as próprias mãos. Tem que se balançar na corda bamba do sentido filosófico da arte e do utilitarismo do ganha-pão, que exige função de segunda a sexta, das 8h às 18h — quando não emenda o fim de semana. Até o lazer é planejado com segunda intenção: na viagem de férias (que já rolou neste momento em que você lê este artigo), o roteiro foi pensado visando abrir novos mercados. Ou iniciar outra etapa, que inclui mudança de ares para ficar mais próximo da clientela.
Tudo isso somado ao espanto de ver as obras ganhando o Brasil, quiçá o mundo. Olha elas ali, naquela live do designer famoso! Kid pode não se achar ainda o cara, mas sabe que um dia chega lá.
25 de setembro de 2021