Hoje em dia, não faz mais sentido pôr uma bolsa às costas, embarcar num ônibus, percorrer 635 quilômetros e tentar a sorte nos barcos de Santos. Primeiro, porque não há mais a promessa de pesca farta e bolso cheio. A época de ouro, quando um jovem disposto e saudável podia ganhar numa única viagem o suficiente para fechar um bordel e farrear com os amigos ou comprar o carro do ano ali, no cash, já se foi. Relatos mais recentes falam de azarados que, após quatro meses em alto-mar, conseguiram menos do que qualquer um, trabalhando em terra, receberia sem igual esforço. Segundo, porque é muito mais simples embarcar numa das traineiras que operam aqui mesmo, no cais do Araçá.
No tempo de seu Mané João, não. Nos anos 1950, um morador desta península tinha pouca escolha. Se quisesse fazer a vida, o caminho inevitável era o litoral paulista. Por isso, aos dezoito anos de idade, ele pediu ajuda a um padrinho, tirou os documentos necessários e iniciou a única jornada possível: a de pescador profissional.
Nascido no Araçá, Manoel João dos Santos conheceu a pobreza. Seus pais, João Manoel e Rosa Maria dos Santos, tinham terras no Estaleiro, atualmente a última praia antes que Porto Belo dê lugar a Bombinhas. Antigamente, toda a chamada Ponta do Araçá, no extremo leste do município e hoje parte de uma área de proteção ambiental, pertencia à família de João. Eram todos lavradores e plantavam o sustento. Mas a vida era dura, de muita labuta e pouca diversão para os oito filhos do casal. Manoel começou a ajudar na roça aos sete anos de idade, época em que hoje as crianças estão na escola. Ele até que frequentou o estabelecimento de ensino do bairro, mas as obrigações na lavoura não permitiam que concluísse as tarefas.
Mané João, como é conhecido, nasceu em 16 de julho de 1936. Está, portanto, com 81 anos de idade. É um senhor baixinho, de cabelos totalmente brancos. Fala ligeiro, com o sotaque acentuado que os nativos daqui, sobretudo os do Araçá, mantêm. Sorri e dá pequenas gargalhadas com frequência, se assumindo um brincalhão.
No tempo de sua mocidade, a estrada que hoje cruza o bairro em que ele cresceu era apenas uma trilha por onde se passava a pé ou de carro de boi ― quando a lama deixava ―, com a copa das árvores sombreando o caminho. À noite, sem energia elétrica, se andava aos tropeções: “Eu não tenho uma unha natural do meu pé, foi tudo arrancado na pedra”, ilustra.
Seu Manoel olha para o teto e força a memória, buscando reconstituir a geografia humana da Ponta do Araçá naqueles tempos, formada por meia dúzia de gatos-pingados e três engenhos de farinha ― um deles de seu avô, Manoel Domingos. Entre os moradores de quem se recorda, havia uma mulher chamada Bárbara, cujo marido Lucas morreu no mar, um certo Guilherme e o filho deste. Mais para baixo, na praia do Estaleiro, ficava a casa de seus pais, a do seu tio, Pedro Maneca, mais as moradas de Clemente, Pedro Sabino e Nilo Raul.
“Eu não tenho uma unha natural do meu pé, foi tudo arrancado na pedra”
Durante um curto período, o garoto Mané João saiu de casa pela manhã e caminhou quase dois quilômetros até onde hoje é o centro do Araçá para estudar. A professora chamava-se Luíza (o sobrenome lhe fugiu à memória) e vinha do bairro Perequê, distante uns oito quilômetros, lecionar na escola improvisada construída no morro e vizinha de uma grande figueira que tombou faz tempo. Apesar do esforço, não havia como concluir as lições, pois as tardes eram completamente preenchidas com o trabalho na roça. À noite, faltava luz e sobrava cansaço. Assim, acabou largando cedo os estudos.
Saíram os cadernos, entraram os remos: Genésio João dos Santos, irmão mais velho de Mané, achou que o garoto, aos treze anos de idade, já tinha força suficiente para puxá-los e o escalou na tripulação da sua lancha, formada por quatro homens. Navegavam pelos arredores, em busca de corvina, viola e emplastro (um tipo de arraia). Pescavam para o consumo, mas o excedente era levado de barco até Itapema para vender.
Essa pesca de subsistência, evidentemente, não nutria as ambições dos mais jovens, ansiosos por tomar as rédeas da própria vida, ganhar dinheiro para construir casa e constituir família. Por isso, aos dezoito anos, Mané João decidiu partir para Santos. Já trabalhavam por lá um irmão e seu padrinho de crisma, Valdemiro, a quem ele pediu ajuda para realizar a jornada. Valdemiro relutou, não o considerava pronto, mas cedeu à insistência do afilhado e, em pouco tempo, Manoel estava na beira do cais. Conseguiu emprego numa embarcação de sol a sol, como se refere às parelhas que retornavam ao porto todos os dias. Pescavam na boca da barra e traziam miudezas (“aquela misturinha, camarãozinho”). Ganhava um conto de réis e quinhentos por mês.
Aos poucos, passou a integrar a tripulação de parelhas maiores, barcos camaroeiros. Mesmo sem nunca antes ter deixado o Araçá, Manoel não teve dificuldades em se acostumar à nova rotina. Ele não deixa claro, mas os compatriotas devem ter contribuído para a adaptação: em alguns barcos em que serviu, a tripulação era inteira de Porto Belo. Seu Manoel chegou a embarcar com o irmão e os cunhados.
O que ganhava, porém, não era seu. Os irmãos e irmãs mais velhos haviam casado cedo e tinham suas famílias para sustentar. Ainda solteiro, Manoel ajudava nas despesas de casa ― que aumentaram com a doença de sua mãe. Todavia, essa situação não durou muito, pois, aos 21, ele se enrabichou por Maria Rosa, prima sua de dezesseis anos. Depois de três anos de namoro ― tempo que pode ser considerado longo para os padrões da época―, os dois se casaram. As núpcias, por outro lado, foram curtíssimas: o Caiçara, barco em que trabalhava, estava na região e o apanhou três dias depois. Rumava para o norte, pois havia camarão aos montes no litoral fluminense. O rapaz tinha férias vencidas e poderia ter ficado em terra, mas decidiu seguir com o resto da tripulação. Só voltou para casa três meses depois. Maria achou o cúmulo:
― Isso não é vida pra homem!
― Pois é, mas que é que vou fazer? Vamos aproveitar o dinheirinho, fazer um pé de meia pra nós ― argumentou.
Mané João continuou embarcado até o final dos anos 1960. Depois, adquiriu uma baleeira em sociedade com o padrinho Valdemiro e foi fazer o caceio nas águas da região. Uns cinco anos mais tarde, quando a pesca por aqui fracassou, decidiu retornar para Santos. Ficou apenas mais um ano, desembarcando por insistência da esposa e em decorrência de uma segunda hérnia, que precisou operar. Ficou uns quatro anos “encostado” pelo INSS e acabou se aposentando aos trinta e poucos anos de idade. A partir daí, só pescava ocasionalmente com os amigos para ter peixe fresco na mesa.
Mas a pesca cumpriu sua promessa, pois lhe deu condições de adquirir um imóvel defronte à avenida principal de Porto Belo, para onde ele e a esposa se mudaram em 1984, em busca de maior comodidade: “Aqui era melhor, era mais perto de tudo”, justifica. Viveram no novo endereço até o início dos anos 2000, quando dona Maria começou a sentir as complicações da diabetes. Nos seis anos seguintes, Mané João precisou cuidar dela e das tarefas de casa: “Aprendi a fazer comida depois de velho”, diz.
Lovanda Marques, filha de criação do casal, trouxe os dois para morar com ela em 2008. Acomodou-os num apartamento nos fundos de sua propriedade, distante duas quadras da subida do morro de Zimbros. Ali, Maria Rosa viveu seus últimos dias. Ela faleceu em 2011. Estavam juntos há 54 anos.
Manoel e Maria não tiveram filhos legítimos. Porém, caiu-lhes nos braços uma menina, filha de um morador errante do Araçá. Jeremias Francisco Marques era um sujeito do mundo, que se perdia em andanças e, não raro, sumia ao radar dos parentes. Conheceu uma “pernambucana” e tiveram Lovanda, que a mulher deixou aos cuidados incertos do rapaz. Seus familiares acharam melhor arranjar um lar para ela e a ofereceram aos Santos.
Dona Maria não queria ficar com ela, mas cedeu à insistência da irmã, que apelou à falta de mulheres na família (a cunhada de Mané João só tinha filhos homens). Lovanda estava com um ano e sete meses. Na primeira semana, acusou “pianço” (asma). “Não comia, não bebia, não fazia nada. Só se reconhecia que estava viva pelo fôlego”. Foi uma prova de fogo para o casal, que precisou apelar a um farmacêutico famoso de Itajaí.
Ao final, correu tudo bem. Mais tarde, Lovanda já era moça, sua mãe veio lhe buscar. Mas ela não deu aos pais de criação tempo de sentir aperto no coração: dispensou a genitora, alegando que sua verdadeira filiação estava ali. A mãe biológica ainda tentou uma segunda vez, mas Lovanda se manteve fiel aos dois. Quando, alquebrado, Jeremias voltou para morrer no torrão natal, ela o auxiliou, com a aquiescência de Manoel. Hoje, aos 55 anos de idade, mãe de dois filhos, faz companhia a Mané João ― que também é pajeado por Xuxa, um velho cãozinho da raça pinscher. Yasmin, a bisneta, é uma quebra bem-vinda no ritmo suave dos dias, preenchidos com caminhadas e dedos de prosa e cultos na Assembleia de Deus. Após tantos anos de mar e tanta luta, seu Manoel João dos Santos sorri ao constatar que, hoje em dia, a vida é melhor: “Naquele tempo, era tudo pobre. Hoje, já nasce em berço de ouro”.
(*) Entrevista concedida em 08 de setembro de 2017.