– Ô, querido, eu tenho lembrança de tudo! – diz convicta Malfiza Neves, embora não tenha sido pouco o tanto que ela viveu até aqui. Em agosto, completará 103 anos de idade. É provavelmente uma das pessoas mais antigas da península. Admira, portanto, que tenha a memória tão boa, condição de que deu provas na hora e meia que conversou conosco. Os olhos, porém, não guardam a mesma precisão, assim como a audição, é preciso falar-lhe ao ouvido. Dona Malfiza procura o interlocutor com as mãos, que exibem unhas bem-feitas, e as usa para dar ritmo ao que conta. Perguntamos do que ela se lembra. De tudo.
Havia uma casa na Praia do Perequê. Um alemão de Itajaí era o proprietário. Ela havia abrigado escravos e era onde o pai de dona Malfiza, Teodoro Moreira, trabalhava. Essa é a segunda coisa sobre a qual nos fala, após nomear os poucos moradores que havia no Vila Nova na época em que era menina. Foi nesse bairro que Malfiza nasceu. Mas a casa do Perequê certamente marcou sua infância e a dos seus seis irmãos.
Ainda menina, Malfiza saiu para trabalhar na residência do então prefeito de Camboriú, Heitor Santos. Viveu nove anos lá. Sua principal incumbência era cuidar do filho menor do político, que sofria de anemia profunda. “Era bem amarelinho, não tinha sangue”, recorda, revelando que tratou do rapaz com um menu que soa um tanto indigesto: filé de fígado cru batido e caldo de feijão quente. Mas ela assegura que, “para quem tiver anemia, é isso”.
Foi com os olhos marejados que Malfiza deixou aquele lar, onde era tida como filha. “Eu era de muita confiança. Eu saía, as mais moças saíam comigo. Pra ir em qualquer coisa, se eu não fosse, elas não iam”. Voltou para casa com duas malas abarrotadas das roupas que ganhou (“não precisei comprar roupa durante três anos”). O mais importante, porém, ela trouxe na cabeça: boa observadora, aprendeu a cozinhar de olhar dona Lili, a patroa, lidando com as panelas. Esse conhecimento seria a sua maior recompensa.
Em 1931, Malfiza casou-se com Valeriano Basílio Neves, empregado de Frederico Scheffler, um engenheiro de minas alemão que fixou residência em Porto Belo em 1922. Por essa época, ela apresentou à comunidade seu recém-descoberto talento. A notícia pegou carona em bocas elogiosas e logo havia uma nova certeza: Malfiza é cozinheira de mão cheia. Tornou-se presença tão necessária quanto a do padre nos mais importantes casamentos da região, em jornadas que exigiam dela três a quatro dias de trabalho (era necessário, por exemplo, abater e preparar previamente os animais que seriam servidos na festa dos noivos). Certa ocasião, foi requisitada para mostrar seus dons em um casório em Governador Celso Ramos (Ganchos), porém recusou, pois teria que ir de barco até lá – e ela morria de medo do mar. A noiva não teve escolha: transferiu a cerimônia para Zimbros, e assim contou com a doceira famosa.
Não eram apenas os casamentos, mas festas de aniversário, comunhões, sempre que houvesse necessidade de comida boa, doces ou salgados, era com ela que contavam. Em casa, Malfiza também se esmerava. Em véspera de Natal, Valeriano punha uma tábua sobre algumas cadeiras e ali exibia os quitutes da esposa: tortas de coco, de abacaxi. “A gente vendia quase tudo”. Quando havia festa entre os seus, “era a coisa mais linda. Eu fazia doces miúdos de toda a qualidade”, lembra, aos risinhos, dispensando melindres ao comentar: “Aqui em Porto Belo não tinha quem fazia uma massa pra bolo melhor do que eu”.
Causava-lhe horror, no entanto, trabalhar em locais “insalubres”. Durante um casamento em Zimbros, avisou ao noivo que não haveria condições de ocupar a cozinha da casa, pois era muito apertada. Resolveu então tomar o engenho da propriedade como base de operações. Para isso, mandou retirar toda a tralha que havia dentro e, com balde e esfregão, deu uma bela geral no local. Não foi a única vez: sempre que necessário, dava uma vigorosa faxina em tudo. “Eu gosto é da limpeza”, destaca. Como a confirmar, apresentou-se à reportagem de banho recém-tomado que a neta Léa Martins lhe deu, os cabelos de neve bem escovados e um lenço cuidadosamente amarrado sobre os ombros.
Circunspecta, Malfiza entregava-se aos afazeres com seriedade, não desperdiçava tempo com conversa fiada. Normalmente, tinha à disposição duas ajudantes (“a Maura, às vezes era a Diones ou a minha nora”), que escolhia segundo o critério de asseio que ela mesma adotava. As companheiras, menos rígidas, até que tentavam envolvê-la em alguma distração, sem muito sucesso. Sua atenção era voltada apenas ao trabalho – e trabalho duro: em um casamento no Perequê, de Malan e Moacir Serpa, havia 600 convidados. “As barracas iam até a praia”. Uma cozinheira de Blumenau, irmã da noiva, foi escalada para ajudar a preparar a comilança. “Só empadão, foram 40”. Os que Malfiza assou fizeram sucesso: “Foram servidos na mesa dos mais ricos”, sorri.
“Aqui em Porto Belo não tinha quem fazia uma massa pra bolo melhor do que eu”
Um mulato, chamado Gabriel, foi por bom tempo uma espécie de chofer da cozinheira. A mando de Manoel Felipe da Silva Neto (Piti), o rapaz ficava encarregado de transportá-la para onde fosse requisitada. Figura benquista na cidade, filho de família proeminente, Piti foi por duas vezes prefeito municipal – em 1972 e uma década depois, em 1982. Era também um “arroz de festa”: estava sempre na lista de testemunhas dos casamentos badalados. E aproveitava-se dessas prerrogativas para fazer pedidos especiais: “Dona Malfiza, por favor, cozinha pra mim aquela torta de arroz com miúdos de frango que eu gosto” – no que era atendido com prazer. Em contrapartida, costumava dar a ela uma carona no final da festa (ou então era Valtinho, o cartorário, outro assíduo nos matrimônios da região, quem a trazia de volta).
Durante os onze anos em que Valeriano trabalhou com Frederico, o casal morou numa residência próxima à farmácia de seu Bráulio Pereira. Depois desse período, os dois adquiriram o terreno onde ela mora até hoje, na estrada que leva ao morro de Zimbros. Com esforço, suor de ambos os rostos, construíram sua morada. “Isso aqui era um barranco”, descreve. Homem igualmente sério, Valeriano não era dado a bater ponto em mesa de bar: “Não tinha vício de nada, era trabalhador”. Nem mesmo uma pequena dose de cachaça no café, para espantar o frio após uma pescaria na boca da noite, ele aceitava tomar.
Ocorria, porém, que batiam ponto na casa de Malfiza e Valeriano – especificamente, à hora do almoço. Por muito tempo, Malfiza albergou admiradores da sua culinária, como o Zezé, um tio do prefeito Piti: “Eu cozinhei pra ele dois anos”. Pelo mesmo motivo, um sobrinho do farmacêutico Bráulio Pereira morou com ela por pelo menos um ano. E a rotina à frente do fogão seguiu por longa jornada: Malfiza já era centenária quando foi dissuadida a deixar a cozinha – por conta da visão debilitada, corria o risco de sofrer acidentes. “Hoje, ninguém quer saber de cozinhar”, responde, ao ser perguntada sobre quem ficou com o “bastão”. Marisa, a neta que assiste à entrevista, no entanto explica que a tradição culinária foi bem assimilada pela família, citando os também netos Lídia, Lisandra e Lourival (que, inclusive, é sócio-proprietário e cozinheiro de um restaurante na cidade). Sueli (Lilo), 78 anos de idade, filho de Malfiza e pai de Marisa, segundo esta, também levava jeito com as panelas.
NOITE BRANCA DE MARGARIDAS
Não era só na cozinha que dona Malfiza esbanjava capricho. Ela adora flores e, enquanto pôde, dedicou a elas o seu carinho. Suas terras – cuja extensão era muito maior do que é agora, pois boa parte da propriedade foi vendida ao longo do tempo – era um tapete florido: havia rosas, margaridas, amores-perfeitos, boninas, bocas-de-leão, copos-de-leite, cada qual em seu devido canteiro. Valeriano compartilhava dessa paixão e, quando ia a Itajaí receber o ordenado, voltava com pacotes de sementes para aumentar a plantação. Ele mesmo preparava os canteiros e semeava. “Isso aqui à noite era branco de margarida. Não tinha flor que existisse no mundo que eu não tivesse aqui. Era a coisa mais linda”, garante a senhora.
Em época de Finados, o marido enchia um carrinho de mão com flores e seguia para o cemitério, enfeitar os túmulos de parentes. E quase todo mundo fazia o mesmo: recorria à plantação do casal para colorir os jazigos familiares. “Eu servia a todo mundo, e eles levavam o que queriam”. Certa vez, um casal de Florianópolis bateu à sua porta. Havia saído de casa desapercebido de flores e não encontrou nem um arbusto pelo caminho. No Perequê, alguém informou que, com certeza, encontrariam o que procuravam na casa de dona Malfiza. De fato, embora esvaziado de uma grande quantidade de flores, transferidas que foram para o cemitério local, o quintal ainda exibia uma alegre variedade floral. “De Florianópolis pra cá eu não vi flor na casa de ninguém. Só encontramos essa coisa linda aqui na casa da senhora”, contou-lhe, maravilhada, a visitante.
Valeriano – ou Lela, como era mais conhecido – aposentou-se como servidor do Estado. Trabalhava na manutenção de estradas. Conforme a esposa nos relatou, foi o responsável pela abertura da estrada que leva ao bairro do Araçá, vencendo o terreno pedregoso com uma boa carga de explosivos. Uma ocasião, em Itapema, seguia de carona na porta de uma caçamba quando esta abriu e ele caiu debaixo dos rodados do veículo. Por pouco não foi atropelado, embora o acidente tenha lhe custado seis meses num leito de hospital em Florianópolis. Durante esse período, quando os filhos iam visitá-lo, pedia que não deixassem que ela fosse vê-lo – dona Malfiza não suportaria: “Eu sou a pessoa mais nervosa do mundo”. Além de Sulamita e Lilo, o casal teve dois filhos de criação: Osvaldo (Vadinho, já falecido) e Albertina (Bete).
Do acidente, ele herdou um leve coxear. Mas continuou sua rotina de trabalho até mesmo depois da aposentadoria. Valeriano morreu em setembro de 1986, aos 84 anos de idade, 55 dos quais esteve ao lado de Malfiza. Nesse tempo, transferiu aos filhos o proceder correto. Ela afirma que Lilo puxou ao pai. Apreciador de bailes, quando solteiro costumava frequentar o salão do seu Egídio, em Bombas, e era tratado como filho pelo proprietário, tal era o seu bom comportamento. Muitas noites, ele e o amigo João Dentista sequer voltavam a Porto Belo: Egídio e a esposa, Izinha, providenciavam abrigo para os dois. Na sede da Fundação de Cultura do município, por sinal instalada na residência que fora de Frederico Scheffler, um austero retrato de Valeriano Nunes recebe o visitante. O motivo de ele estar lá é que a Casa de Cultura foi batizada com seu nome, provavelmente em razão de um divertimento que, afinal, seu Lela cultivava: segundo se diz, ele era um entusiasta e hábil cantador de boi de mamão.
“Coisa melhor que tem é a educação, a pessoa saber respeitar os outros”, pondera dona Malfiza, recordando a criação dos filhos num tempo em que a brincadeira predominante era matar passarinho. “Hoje, não pode mais fazer isso”, ela ressalva. Também lembrou da mocidade de Sulamita, hoje com 80 anos de idade, que somente podia frequentar os bailes (havia dois salões na cidade, o Aliança e o Liberal) “sob escolta” de comadre Vininha e suas filhas. “A coisa hoje tá diferente”, observa – certamente com desgosto. Trata-se de um ônus de se viver tanto: constatar como as coisas mudam, quase ao ponto de não mais se reconhecer os caminhos que um dia foram tão habituais. Na verdade, dona Malfiza está confinada ao terreno seguro de sua casa, já não pode mais sair. Já não comanda seus passos (ressente-se de não poder servir um café ao trio que a entrevista), nem planta suas flores. Cercada pelo carinho da família que construiu, sabe mais do que ocorre do lado de fora pelo vai e vem de visitantes, que sempre estão à porta prestando-lhe tributos. Talvez seja essa atenção constante uma das razões de sua longevidade. Ao fim da conversa, após os agradecimentos e um último elogio à sua boa disposição, dona Malfiza replica com deliciada ironia: “Tomara que todos vocês cheguem também [aos cem anos]… para saber o que é a velhice”.
(*) Entrevista concedida em 06 de maio de 2016.