Manhã de sábado com céu limpo e uma brisa fresca que o sol das 10 horas começa a esquentar. Estamos num dia enganosamente primaveril do mês de agosto, observando o movimento no final do cais dos pescadores do bairro Araçá. Quase uma centena de caixas espera enquanto os dois barcos atracados vão sendo descarregados. Corvinas saem de um, anchovas do outro. Um pouco mais atrás, outra embarcação, maior, aguarda as provisões para seguir rumo a Itajaí. Benício, o proprietário desta última, conversa com colegas na entrada do trapiche. Queixam-se das condições da pesca, com sua carga pesada de impostos e períodos de defeso. Sentado junto ao grupo, a jaqueta preta contrastando com os cabelos completamente brancos, seu Silvestre mantém-se atento ao papo e ocasionalmente expressa uma opinião. Aos 89 anos de idade, o pai de Benício já não vive mais o dia a dia da profissão. Mas, a seu tempo, ajudou a consolidar a vocação pesqueira do bairro: o cais onde estamos é testemunha disso. Construí-lo foi ideia sua. “Antes, o pessoal tinha que descarregar na praia”, conta o pescador aposentado, que não apenas idealizou como pôs mãos à obra. Embora não tivessem experiência (“nunca tinha posto a mão numa colher de pedreiro”), ele e os filhos ergueram os pilares de dentro d’água usando tubos de concreto e uma bomba manual. Quase trinta anos depois, os alicerces continuam lá: “Na parte que eu fiz, não foi mexido nada”, orgulha-se.

Batizado em homenagem ao santo do dia em que nasceu (31 de dezembro), Silvestre Francisco Marques é filho de Francisco José Marques e Maria Isabel de Jesus. De ascendência lusitana, o casal chegou ao Araçá proveniente da praia da Armação do Itapocorói, em Penha. Francisco adquiriu um lote na praia do Estaleiro por 60 mil-réis. Silvestre era garoto, porém calcula que na época havia 48 casas em todo o bairro. Havia também 23 engenhos de farinha, dos quais nenhum chegou aos dias atuais (o único engenho ainda existente foi construído tempos depois).

O que trouxe a família ao Araçá não foi a pesca, mas a terra boa para o cultivo. Como no resto da península, a lavoura era a principal atividade dos moradores daquela região. Plantava-se mandioca, que era a base alimentar das famílias, complementada pelo feijão, pela caça (“essas encostas aí eram tudo cheias de caça. Tinha paca, tatu, tinha tudo”) e pelos peixes.

“A farinha de mandioca tinha que deixar de um ano para o outro ensacada, em cestos de taquara”, explica ele o resultado de um processo que levava quase meio ano (entre maio e setembro) e, de certo modo, regulava toda a rotina familiar: antes, era preciso realizar o plantio (preferencialmente em período de lua cheia), cuidar das mudas, extrair os tubérculos da terra. O resto do tempo era dedicado a trazer peixes para a mesa, cortar lenha para o fogo, cuidar da criação. Nenhum esforço fugia desse esquema imutável. Por exemplo, a última semana da Quaresma era dedicada a pôr as galinhas a chocar: “Se botasse no inverno, morria quase tudo”.


“Essas encostas aí eram cheias de caça”


 

O menino Silvestre começou sua lida com onze, doze anos de idade, fazendo “bicos” para os vizinhos: como não havia mercearia por perto, ganhava alguns tostões indo buscar provisões nas vendas de Neném Matias, Antônio Jorge e Antônio Stadler no centro de Porto Belo, fazendo na corrida os quase dez quilômetros de ida e volta. Com treze, descia o morro carregando feixes de lenha (“uma pilha de lenha perto de casa tinha que ter sempre”). E pescava, conduzindo sua “ubá” (canoa de um pau só) pelas águas mansas do entorno, à espreita dos cardumes de sardinha.

Perto de completar dezessete anos, Silvestre saiu de casa para ir trabalhar na construção da estrada de ferro no bairro blumenauense de Capim Volta. Dali seguiu para a serra de Corupá, 85 quilômetros ao norte, onde ajudou na construção de uma barragem. Foi quando recebeu, com dez dias de atraso, um telegrama convocando-o a se apresentar ao serviço de alistamento militar.

Era 1945, e a 2ª Guerra Mundial estava chegando ao fim. Embora distante, o conflito na Europa trouxe consequências para os moradores da região: à noite, voluntários (Silvestre era um deles) patrulhavam as praias para garantir que nenhuma luz permanecesse acesa, de modo a prevenir a ação dos submarinos alemães. A preocupação era justificada: ao menos 25 u-boots espreitaram a costa brasileira durante a guerra. Sua missão era cortar a rota de suprimentos da marinha norte-americana, mas os navios mercantes brasileiros não eram poupados, resultando em 36 afundamentos. Em contrapartida, onze submarinos foram mandados ao fundo do Atlântico pela aviação aliada. A localização da maioria até hoje é incerta. Apenas um foi encontrado: o U-513, comandado pelo almirante condecorado pelo Führer Friedrich Guggenberger e bombardeado por um hidroavião norte-americano em julho de 1943, foi descoberto por uma equipe chefiada pelo navegador Vilfredo Schürmann a 85 quilômetros da costa leste de Florianópolis em 2011.

Silvestre voltou a Porto Belo com o telegrama nas mãos e foi instruído a tratar do assunto no 14° Batalhão de Caçadores, sediado no bairro Estreito, em Florianópolis. Estava apreensivo, achando que o ano de serviço militar seria um “atraso de vida”, mas o agente local de alistamento o tranquilizou: normalmente, os jovens da cidade não eram aproveitados pelas Forças Armadas, sendo quase sempre dispensados. Porém, depois de três dias de instrução, seu formulário recebeu o carimbo de admissão.

Na 1ª Companhia do 14° BC (atual 63° Batalhão de Infantaria), o novo recruta aprendeu a cavar trincheiras e também a ler e escrever. Antes disso, era o que ele classifica como “analfabeto completo”. A opção pelo estudo foi tomada por uma necessidade de momento: se quisesse dar baixa, ao final dos doze meses (ele esticou a temporada por mais sessenta dias), julgou que precisaria saber, ao menos, assinar o próprio nome. Ciente disso, foi aos cadernos e ingressou num curso de sapador, que é o praça responsável por cavar abrigos subterrâneos (sapas) e fossos de tropas.


“Quanto mais cedo começar a trabalhar no pesado, melhor”


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No seu último dia de serviço militar, Silvestre viveu uma situação um tanto embaraçosa: estava com mais quatro soldados tomando banho na piscina do quartel quando foram surpreendidos pelo comandante do 32° Batalhão de Caçadores de Blumenau (atual 23° de Infantaria), em visita de inspeção ao 14° BC. O oficial imediatamente ordenou ao sargento da companhia que o prendesse e a outro colega. Ficou uma hora e meia no xadrez e, na mesma tarde, teve a autorização de baixa assinada.

Mas haveria outro inconveniente: durante o tempo de caserna, ele manteve as economias de dois anos de trabalho guardadas num cofre do quartel. Em sua última noite como soldado, colocou a quantia (500 mil-réis) debaixo do travesseiro. Assim que acordou, pôs o dinheiro na carteira e esta por dentro da camisa. De algum modo, a carteira caiu e ele, aflito, recorreu ao seu superior. Mas nem a pressão do capitão sobre os demais recrutas resolveu. A carteira até acabou aparecendo; o dinheiro, não.

“Sendo vivo, acontece de tudo” é a conclusão que seu Silvestre Marques tira desse episódio.

De volta à vida civil, o jovem não retornou a Porto Belo, mas foi direto para Blumenau, reassumir o antigo emprego. Segundo recorda, foram ao todo seis anos como operário de estrada de ferro. Sobre isso, nenhuma queixa. Na verdade, uma boa dose de trabalho pesado é o que este nonagenário receita para edificar a juventude: “Quanto mais cedo, melhor”. Para ilustrar, ele tem a acrescentar que, encerrado o período fincando trilhos, voltou enfim à península, para novamente manusear remo e espinhel. Aderiu às tripulações de pescadores araçaenses que, em suas “canoas de um pau só”, percorriam milhas de litoral. “Ia pescar no Arvoredo, nas Galés, Deserta, nas Aranhas, Moleques [do Sul], lá eu conheço tudo”. Tempos de abundância, quando era possível largar a linha de cima do parcel e retirar do mar quase 600 quilos de garoupas. “Hoje mata uma, duas. O peixe está diminuindo”, constata o experiente pescador, que até o ano passado ainda se aventurava no mar, em incursões à ilha do Macuco, próximo da ponta de Canto Grande, em Bombinhas. Também era capaz de caminhar até dois quilômetros. Atualmente, vive sob a vigilância da filha Maria Isabel, com quem mora na casa que ela possui defronte ao trapiche que o pai construiu.

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A preocupação se justifica, considerando que suas pernas já o traíram algumas vezes. Com o dedo, ele refaz no outro braço o traçado de um corte feio que sofreu (“cortou aqui e veio até aqui e cortou tudo aqui”) quando rolou morro abaixo até parar sobre uma calçada de pedra, há pouco menos de um ano (“era sangue para tudo quanto era lado”). Sem contar as três cirurgias que sofreu (apendicite e duas hérnias). E mais “pancada na cabeça, lambada de tudo quanto é jeito, corte na perna até o osso” – troféus de uma vida longa de trabalho.

Na época em que construiu o cais dos pescadores, seu Silvestre estava envolvido na política. Tendo participado da fundação do diretório municipal do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), ele obteve do então candidato ao governo do Estado Pedro Ivo Campos a promessa de que o apoiaria em seus projetos de melhoria para o bairro. O ex-deputado federal e ex-prefeito de Joinville sagrou-se governador em 1987 (ele morreu no cargo, em 1990, vítima de câncer) e cumpriu a palavra, enviando recursos para a construção do muro de arrimo que hoje serve de leito para a estrada geral do Araçá no trecho defronte à praia onde está o trapiche.

No ano seguinte, Silvestre saiu em campanha a vereador. Foi eleito para a legislatura de 1989 a 1992 e reeleito para mais quatro anos, de 1993 a 1996. Entre uma e outra, ocorreu um fato marcante para o município: a emancipação política do então bairro de Bombinhas, em 1992.Se Porto Belo como um todo encolhia, o Araçá passava por uma transição importante, do modo de pesca artesanal para o modelo industrial. Saíam de cena as ubás e entravam as traineiras equipadas para pesca em alto-mar. Gerações de jovens embarcaram nelas em busca de um retorno financeiro que os empregos em terra não davam. Alguns ganharam muito dinheiro, tornaram-se patrões, construíram seus próprios barcos. Uma frota nasceu, na ordem de dois a três novas embarcações a cada ano. Hoje, seu Silvestre calcula mais de 70, entre as maiores, pois médios, na faixa de 18 metros de comprimento, “tem à força”, ele calcula.

Muito disso por causa daquele trapiche, embora o idealizador e executor da obra não tenha colhido tantos dividendos. Não se tornou “dono de firma”, apenas adquiriu uma ou outra baleeira, nada muito maior do que uma canoa. Não se pode dizer o mesmo dos filhos: todos os oito (Maria Isabel e suas duas irmãs, inclusive) tornaram-se armadores de pesca.

“Não tem ninguém rico, mas, se trabalhar, tem o tempo de melhorar”, pondera. Viúvo há três anos (dona Delionites de Aquino Marques, com quem fugiu para se casar na semana de Natal de seus 24 anos, faleceu aos 83 anos de idade), Silvestre Marques deixou legado duradouro também na política, instituindo uma dinastia que permanecerá atuante ao menos pelos próximos quatro anos: depois que deixou a Câmara de Vereadores, ele foi sucedido pelo filho mais velho, Francisco (já falecido), depois pela nora, dona Benta, e a seguir pelos netos Charles, Frank e, a partir do ano que vem, Marcos, que conquistou uma das nove vagas do Legislativo nas eleições de outubro. Com 368 votos a seu favor, irá representar o Partido Republicano Brasileiro (PRB), cujo presidente municipal é Denisio Silvestre Marques – adivinhe filho de quem? Assim, são quatro gerações de Marques a seguir o caminho desse patriarca veterano da pesca e da política.


A entrevista já avançava a hora do almoço quando João Carlos dos Santos, marido de Maria Isabel, acende a churrasqueira para preparar o churrasco. A fala mansa, com o sotaque típico do povo da região, e as muitas histórias do entrevistado certamente renderiam conversa para uma tarde inteira, mas o recado estava dado. Era hora de recolher as câmeras e ir embora (não sem antes passar no restaurante que há no trapiche, para saborear o almoço que seu Silvestre gentilmente insistiu em pagar). Despedimo-nos de João e de seu sogro imaginando se, estimulado pela conversa, ele seguirá animando a mesa dos Marques com suas reminiscências…

(*) Entrevista concedida em 13 de agosto de 2016.

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