Numa tarde de segunda-feira, no longínquo ano de 1938, o ônibus que faz a linha entre Itajaí e Florianópolis para em frente à casa de Ângelo José Albino Pereira, na localidade do Rio Pequeno, município de Camboriú. Ao motorista, o lavrador e operário de manutenção da estrada do Morro do Encano apresenta um garoto de pés descalços, cabeça raspada e uma sacola com pertences nas mãos: “O senhor me leva esse menino até Gaspar e entrega lá na farmácia do seu Anfilóquio Nunes Pires”, pede, informando que a passagem será paga pelo destinatário.

No último dia 26 de março, o rapaz em questão completou 90 anos de idade. Naquela ocasião, Bráulio Pereira tinha apenas doze anos e saía de casa pela primeira vez. Ao receber dos familiares os cumprimentos pelo nonagésimo aniversário, no Sábado de Aleluia, somava uma vida de perambulações: “Rodei muito”, contou-nos. Mas tudo o que viveu e construiu – e que desfruta ao lado da esposa Roseli Inácia Leal, 56, numa discreta residência a três quadras da Praça da Bandeira, em Porto Belo – se deve àquela solitária viagem de ônibus.

Um acaso foi o responsável pela tremenda mudança. O tal Anfilóquio apareceu no Rio Pequeno à procura de um rapaz que pudesse ajudá-lo em sua farmácia, localizada no município de Gaspar. Informou-se com uma professora do Grupo Escolar José Arantes e ela indicou o garoto Bráulio, que havia, no ano anterior, completado a quarta série primária – o que seria, palavras dele, “toda a minha faculdade”.

Quando o comerciante apareceu no domingo à porta dos Pereira, a bordo de uma “bela Buick amarela”, e pediu para levar o rapaz, o casal não receou pelo filho. Bráulio era o primogênito de uma família numerosa, que crescia em progressão alfabética – a ele seguiriam-se Cecília, Dimas, Erotides, Fermínia, Genésia, Heitor, Irene e José. Vivendo na penúria e com tantas bocas para alimentar, Ângelo e a esposa, Maria Apolônia Pereira, consideraram aquela uma oportunidade de Bráulio ser alguém na vida. Ele, inclusive, teria ido com o estranho no mesmo dia, não fosse o inconveniente de sua mãe ter-lhe previamente ministrado um vermífugo, o que poderia causar algum problema durante a viagem.

No dia seguinte, Bráulio embarcou em direção ao prometido futuro. Não havia garantias de que teria êxito – afinal, tinha estudado apenas até o quarto ano. Mas uma qualidade pesava a seu favor: tinha compulsão por leitura. “Eu lia tudo o que me caísse às mãos”, lembrou, citando os calhamaços de medicina – edições da Farmacopeia Brasileira e do Manual Chernoviz, este da época do Império – e outras publicações que encontrou na biblioteca do patrão e que devorava enquanto desenvolvia um rápido e seguro aprendizado como ajudante de farmacêutico.

Durante cinco anos, a Pharmacia Santa Cruz foi seu lar; Anfilóquio e a esposa, dona Maria Pereira Pires, a sua família. Mas chegou o dia em que não havia mais o que aprender, e o bondoso patrão achou que seu pupilo merecia um emprego melhor. Assim, Bráulio foi enviado a Lontras, próximo a Rio do Sul, para trabalhar na Pharmacia do Povo.

Não ficou por muito tempo, porém – pouco mais de um ano. Embora tenha aprendido muito sobre manipulação de medicamentos e curativos (“foi uma verdadeira escola”), perturbava-o o temperamento explosivo do proprietário do lugar, um “pernambucano que chegou não se sabe como, mas era muito versado em medicina”. Paulo Alves era zeloso com seu estabelecimento, mas estourava toda vez que se desentendia com a namorada, tornando-se nessas ocasiões um tormento para os empregados. Dizia-se, inclusive, que teria surrado e encarcerado um dos antigos servidores no porão. Bráulio então resolveu ir embora: juntou suas coisas e comunicou a decisão à governanta.

Assim que soube, Paulo Alves chamou-o à sua presença e aplicou uma descompostura que o deixou “de orelhas baixas”, pois não estava disposto a dispensá-lo. O rapaz, à época com quase dezoito anos, manteve-se firme e não recuou. Ouviu mais algumas queixas, expôs seus motivos e finalmente o patrão aquiesceu – não sem antes obter dele uma carta, registrada em cartório, dando conta de que saía daquela casa “pago e satisfeito”. Recebeu o ordenado, pegou sua maleta, atravessou uma cerca até a casa ao lado, onde morava um casal conhecido dos tempos de Gaspar, e pediu pousada. Na manhã seguinte, embarcou no trem com destino a Blumenau. Após tantos anos, sentia-se livre. “Foi um sentimento agradabilíssimo”, recorda, saboreando ainda hoje aquele momento de plenitude.

Bráulio voltou a Gaspar e contou ao antigo patrão o que havia ocorrido. Anfilóquio pensou, foi até à máquina de escrever, datilografou uma carta e disse a ele que levasse até Blumenau e a entregasse no jornal que havia na Rua 15 de Novembro. Era um anúncio oferecendo a sua mão de obra. O garoto pegou uma bicicleta e fez o combinado. Na volta, Anfilóquio orientou-o a voltar à casa dos pais, em Camboriú. Se houvesse alguma novidade, ele seria informado.

No Rio Pequeno as coisas estavam diferentes: sua mãe havia morrido pouco tempo atrás, de uma complicação no parto de gêmeas. As meninas também não sobreviveram. O pai casou-se novamente e deu sequência à prole, mas sem a obsessão pelo alfabeto. Teria ainda mais seis filhos, um dos quais adotado. Davi é o nome deste e ele esteve com o irmão em sua festa de aniversário, no último mês de março.

Mal teve tempo de se inteirar das novidades, Bráulio recebeu a notícia de que havia uma mensagem para ele no posto dos correios. Foi até lá e soube que seria contratado pela Pharmacia e Laboratório Boetger, de Brusque. Um funcionário da casa estava de saída e ele assumiu a vaga. A empresa produzia alguns remédios conhecidos, tinha inclusive tipografia própria. Entre os vários funcionários, havia uma mocinha de uns dezesseis anos, que trabalhava na manipulação e embalagem de medicamentos no laboratório. Seu nome era Alaíde Sena. Tinham em comum a mesma data de nascimento, 26 de março. Três anos os separavam. “Foi amor à primeira vista”.

Alaíde seria sua primeira (“e única”) namorada. Nos quatro anos seguintes, o casal namorou e noivou. Contavam poucos meses do casamento quando o Laboratório Catarinense, de Joinville, adquiriu o grupo Boetger e encerrou as operações em Brusque. Alguns funcionários foram dispensados, outros seguiram para a matriz da empresa. Bráulio foi mandado a Florianópolis.

O casal viveu um ano e pouco na Rua Gaspar Dutra, no bairro Estreito. Nesse período, veio ao mundo o primeiro filho, Gerson, nascido nove meses e quinze dias após o casamento. Agora um pai de família, Bráulio começou a pensar em ter um negócio próprio. Ele consultou o inspetor de farmácias do Estado, José Luiz Osvaldo D’Acampora, que sugeriu-lhe se estabelecer em sua terra natal, Anitápolis, distante uns 85 quilômetros de Florianópolis. A cidadezinha estava sem farmacêutico desde que o último havia trocado tiros com algum patrício e deixado o local.

No dia em que o primogênito completou um ano de idade, Bráulio chegou em Anitápolis para conhecer o lugar. Gostou e logo arrematou a mobília que pertencia ao antigo farmacêutico (e junto com ela, uma mula, que usaria para os atendimentos domiciliares). Trouxe consigo um estoque de remédios, que comprou a prazo do Laboratório Catarinense, seu último empregador. Batizou sua farmácia de Galeno – inspirado em uma homônima, de Brusque – e pôs mãos à obra.

A família Pereira (acrescida de mais duas filhas, Marlene e Lígia) viveu em Anitápolis durante onze anos. Nesse período, ocorreu um êxodo na cidade: muitos moradores bandearam-se para o Paraná, em busca de terras mais férteis para a agricultura. A seu tempo, os filhos do casal também tiveram que sair para poderem seguir com os estudos, pois ali havia apenas as quatro séries iniciais – e o pai não queria que eles ficassem na escola o mesmo pouco que ele ficou. Com os meninos longe de casa, estudando em Brusque, Bráulio e Alaíde começaram a cogitar uma nova mudança.

Por essa época, o empresário tijuquense Pedro Andriani passou a frequentar Anitápolis, pois iniciou um relacionamento com uma viúva da cidade (ele também o era). Parente distante de Alaíde, com quem compartilhava a ascendência italiana, Pedro soube dos planos do casal e mencionou um destino possivelmente promissor no litoral: Porto Belo.


“Esta aqui era a terra das lombrigas, todo guri que você visse era barrigudo, amarelo e inchado”


Bráulio veio para conhecer a cidade e não se entusiasmou: era o início dos anos 1960 e não havia energia elétrica. As estradas precárias dificultavam o tráfego dos raros automóveis e o carro-de-molas de João Abraão fazia as vezes de táxi. O forasteiro hospedou-se no hotel de Lilo Silva, no casarão que ainda se vê defronte à Praça dos Pescadores, vizinho ao Píer Municipal. À noite, deitado num dos quartos da hospedaria, estranhando o rumor do mar, o farmacêutico pensou: “Meu Deus, onde é que eu fui me meter!”

Apesar do desalento inicial, ele resolveu apostar. Saiu em busca de um lugar para estabelecer a farmácia e recebeu a dica da agente dos Correios, dona Tita, de que havia uma casa de veraneio para alugar, pertencente a uma família de Itajaí. Bráulio seguiu até aquela cidade e prontamente fechou negócio com Otto Labes, filho dos proprietários. O imóvel era bem localizado: ficava defronte à Prefeitura (na época, situada na entrada da Vila Mateus), separada desta pela rua principal. Nos fundos da casa estava o mar.

A notícia de que havia um farmacêutico na cidade correu depressa. Bráulio, então com trinta e cinco anos, não teve tempo sequer de ser formalmente apresentado: estava descarregando seus pertences quando dois homens desceram de uma caminhonete. Eram o açougueiro Valter Souza e o peixeiro Zé Dodoca. O último trazia nos braços o filho de poucos meses com os lábios salpicados por uma espécie de baba sanguinolenta e o rosto avermelhado. Valter explicou que a criança passou a manhã inteira com “pianço” (bronquite) e nenhum remédio solucionava.

Bráulio foi até uma gaveta com ferramentas, virou-a no chão, desembrulhou dos jornais um abaixa língua metálico e uma pinça, pediu para abrirem a boca da criança e verificou que havia alguma coisa presa na garganta. Introduziu a pinça e tirou de lá um objeto, que jogou fora (depois viu que era o botão de uma chupeta). “Ele estava simplesmente se afogando, e eles achavam que aquilo era produzido pelos vermes”.

Esse primeiro “milagre” (Bráulio, evangélico desde menino, acredita que houve de fato uma intervenção divina) causou forte impressão na cidade, até então acostumada a tratar seus males com xaropes e infusões. “Esta aqui era a terra das lombrigas, todo guri que você visse era barrigudo, amarelo e inchado. Houve muitas mortes causadas por ataques de vermes”, revela. No dia seguinte, uma vizinha, Lurdinha Serpa, chamou-o para ver o filho dela, que estava com febre alta e convulsionando. Bráulio encheu uma banheira de água morna e colocou o menino dentro dela, para espanto da mãe e dos vizinhos. Mas a criança foi medicada e melhorou logo.

Na casa ao lado de Lurdinha morava Elza Cruz, sua irmã. Estava grávida de uns três meses quando perdeu o bebê. Bráulio não tinha experiência com partos nem com abortos (apenas havia finalizado os procedimentos quando sua terceira filha nasceu, pois a parteira saiu às pressas para atender outra ocorrência), mas tinha lido bastante a respeito e concordou em ir vê-la. O cordão umbilical estava exposto, mas era preciso retirar a placenta do ventre da mãe. Fazendo-lhe pressão no abdômen, ele segurou o cordão (“eu nem usava luvas, simplesmente lavava as mãos”) e foi puxando de um lado e de outro, até que conseguiu retirar a bolsa fetal. Depois, a esposa de Zé Mateus, Ivone, acabava de ter um filho, mas não havia quem cortasse o cordão umbilical. “Fui lá e prontamente peguei, amarrei e cortei. Fiquei parteiro!”.

Todos esses casos ocorreram num intervalo de poucos dias e fizeram a fama do recém-chegado. Logo as pessoas diriam que “se o seu Bráulio não deu jeito, nem adianta levar para o hospital”. Modestamente, ele atribui o dito a uma grande dose de exagero, mas é de se imaginar que muita gente na época devesse a vida ao experiente farmacêutico, que corria a península remendando estropiados e fazendo partos, muitas vezes tomando emprestado o jipe da Prefeitura para se deslocar. Ainda hoje, admira-se do tanto de pessoas que lembram-lhe que foram suas mãos que as trouxeram ao mundo. Alguns êxitos estão mais vivos na memória que outros, como o parto que fez de Epifânia Serpa quando esta tinha a idade excepcional de 50 anos; mas marcaram-lhe os episódios dramáticos, como quando foi ao Zimbros atender uma parturiente e encontrou a cabeça asfixiada do bebê projetando-se por entre as pernas da mãe (“nunca esqueci o nome dela, Luíza”), pois não houve quem o fizesse sair por completo e o farmacêutico precisou retirar o corpo sem vida. Ou quando esteve na Praia dos Ingleses, para socorrer uma outra mãe cujo parto havia-lhe deixado uma profunda ruptura no períneo e que precisou esperar que ele voltasse no dia seguinte para fazer a sutura.

Após dois anos em Porto Belo, Bráulio mandou buscar de Anitápolis os materiais de construção que havia comprado um tempo atrás e fez construir, ao lado do posto de saúde e defronte à avenida principal, a sua casa e farmácia próprias. Usou o mesmo nome para o estabelecimento, Farmácia Galeno. Também mandou instalar a primeira campainha elétrica de que se teve notícia na cidade. Ela era o seu orgulho – mas também o seu tormento, pois tocava a qualquer hora da noite, especialmente depois que a praia de Itapema passou a ser frequentada pelos veranistas, assim que a BR-101 foi inaugurada. Bráulio tinha por hábito dormir tarde, mas era sempre surpreendido por algum “ai, ai, ai” nas altas horas da madrugada. “Mas foi gostoso. Eu fazia de bom coração, tanto é que esse povo até hoje me quer bem. Esse é o maior presente que eu tenho”.

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Quando se aposentou, Bráulio voltou a morar em Brusque durante um tempo. Porém, não se desligou da farmácia, embora a tivesse arrendado a um sobrinho – que posteriormente se envolveu em uma aventura amorosa e foi forçado a deixar a cidade. Mais tarde, o comando da Galeno passou ao filho caçula, o médico dentista Orlando Pereira (que faleceu em 2002, num acidente automobilístico), que também comprou a casa para estabelecer o seu consultório odontológico. Atualmente, a farmácia, renovada e integrada à rede de drogarias Farmagnus, está sob os cuidados da farmacêutica Márcia Pereira, viúva de Orlando.

Há oito anos, no dia 31 de agosto, dona Alaíde morreu. Mais sete meses, teriam completado 60 anos de casamento. Por iniciativa dos filhos, porém, Bráulio não ficou muito tempo sozinho: eles conversaram com uma senhora que também havia perdido o marido recentemente, Roseli Leal, propondo a união dos viúvos. Diante do inusitado convite, Roseli disse que nada decidiria até que completasse um ano de luto, dali a poucos dias. Terminado o prazo, quando saía da igreja, depois da missa que lembrou um ano da morte do marido, o pretendente a esperava no lado de fora. Menos de três meses depois, estavam vivendo juntos.

“Essa é a minha vida até aqui”, conclui o idoso farmacêutico, que faz um balanço positivo da jornada: “Não fiquei rico, mas também não almejei o que não era meu”, diz com tranquilidade. A saúde está boa (“gosto de mulher, mas não posso mais”, comenta de pilhéria, divertindo-se com o constrangimento de Roseli) e a memória mantém-se afiada por meio de um passatempo favorito: palavras cruzadas. Ocasionalmente, enfurna-se em sua oficina para consertar ou inventar coisas, hábito que aprimorou em Anitápolis com a ajuda de um ferreiro – e depois compadre – que o indicava toda vez que aparecia alguém com alguma tralha para consertar: “Relógio, vitrola, revólver, pistola, essas coisas do interior. Eu era meio [Professor] Pardal e gostava de fazer. E não cobrava”. Há, inclusive, inventos testados e aprovados, como a cadeira de plástico com sistema de rodinhas que serve para facilitar o banho de enfermos, que já teve três exemplares produzidos.

Quase ao fim da conversa, seu Bráulio conta que pensou num título se algum dia fossem escrever a narrativa da sua vida: “Memórias de um prático de farmácia”. Não sabemos se o que tinha em mente era algo como este artigo. Provavelmente não: o que ele viveu daria um livro. Na falta de um biógrafo mais consciencioso, assumimos que não haveria problema de nos apropriar do título. Fica como a nossa homenagem a esse incansável aprendiz.

(*) Entrevista concedida em 09 de abril de 2016.

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