Era um dia de outono e Manoel Honorato da Silva estava satisfeito consigo mesmo: conseguiu, contra a vontade da esposa, escapulir para ir pescar tainhas na praia de Mariscal na companhia de um neto, Rafael. Ao fim do lanço, recolheu a rede, sentou-se ao lado dele e confidenciou: “Estou no lugar onde fui criado, estou onde queria. Se morresse agora, eu morria feliz”. Como a confirmar a seriedade dessas palavras, recostou-se suavemente no ombro do rapaz e, de fato, morreu. Era o ano de 2015 e seu Nelinho do Balaio contava 79 anos de idade.
Em sua casa no Alto Perequê, dona Teia soube da notícia aos picados, da parte dos filhos, como convém a uma situação dessas. Acabavam-se, assim, 55 anos de vida em comum. O coração dela, porém, guardava um luto mais antigo.
Era abril de 1998 e Edevaldo também estava alegre. Contra o conselho da mãe, adquiriu uma motocicleta. Saiu naquele dia 19 para encontrar uma irmã no baile. Na volta, sozinho, a tragédia cruzou-lhe o caminho. Um comerciante de Tijucas, amigo da família, passou pelo local onde um corpo debruçava-se sobre uma moto. Levado ao hospital, Edevaldo morreu ao cabo de quatro dias. Estava perto de fazer 17 anos de idade.
O histórico de perdas de Maria Célia Silva, 79, inclui um neto, Renato (“ficou doente dez dias e morreu”), e um irmão, coisa de uma quinzena atrás. Tudo isso foi paulatinamente embotando a alegria outrora reinante na última residência da Servidão Silva, número 100, onde dona Teia e seu Nelinho do Balaio fizeram a vida. O lugar, porém, nada tem de lúgubre: o curto trajeto de chão desde a avenida principal do bairro Alto Perequê se abre, logo após a casa simples da septuagenária, para um vasto campo de gramíneas, onde quero-queros fazem ninhos, ao fundo do qual desce um córrego e inicia o suave aclive de um morro verdejante. Um cenário bucólico e um raro universo de fantasia para as crianças, com direito a histórias de mal-assombro.
Curioso é que, diferente da maioria das ruas, que expandem suas fronteiras com o passar do tempo, a “Rua do Fogo” encolheu. Na época em que dona Célia aqui chegou, havia casas bem lá no fundo, justo das duas vizinhas que viviam em pé de guerra e são a razão pela qual a servidão é chamada assim. Havia também uma serraria encostada no morro, estufas e plantações de fumo. Boa parte das terras foi posteriormente adquirida por Pedro Alemão, o finado proprietário do alambique, atualmente sob a direção dos herdeiros deste. Foi ele quem transformou a área em campo de cultivo de grama.
O que trouxe Teia e Nelinho até aqui foi o Cachoeirinha. Foi no salão de baile de Santa Luzia que eles se viram pela primeira vez. Coincidência: embora não o soubessem, calhou de os avós serem irmãos. Manoel Honorato nasceu em Zimbros e pescava no Rio Grande do Sul. Maria Célia veio das bandas do Tabuleiro, nos fundos do terminal rodoviário e atual bairro de Itapema, e fazia limpeza na cozinha do hotel Beira-mar. Foi só questão de bater o olho. Quase um mês depois, quando o rapaz retornou ao salão após mais uma temporada de mar, ali estava Célia. E foi assim.
Foi um “timing” preciso para quem não era assídua do lugar. Dona Maria Geraldina da Silva levava os filhos ali. Foi só pela insistência de uma tia que Teia pôde pisar pela primeira vez no Cachoeirinha — e não sem antes terminar de cavar o eito de mandioca. Tinha dezesseis anos na época.
Maria Geraldina e Leonel João da Silva tiveram cinco filhos. Destes, duas nasceram mulheres. Ele era operário da estrada de ferro em Gaspar; ela cuidava de lavouras alheias, trabalho que era realizado com o concurso da mão de obra dos filhos, todos pequenos.
Teia até que frequentou a escola. Mas empacou cinco anos na mesma cartilha. Sua mãe, então, arrenegou: sobrou para a menina ocupar-se em tempo integral com apanhar café e colher arroz, rotina que durou até a mocidade, quando ela conseguiu emprego no Beira-mar, então uma parada de almoço para caminhoneiros. Trabalhou no local durante uns quatro anos. Saiu de lá para ir morar com Nelinho.
Esse mesmo número de anos foi o quanto ficou “gostando” de Manoel. Até o dia em que compareceu ao batizado de um sobrinho e não retornou à casa dos pais. Apenas mandou bilhete: “Segunda-feira eu volto para pegar as minhas roupas”. Só depois de três anos que a união foi oficializada no cartório e na frente do padre. Nenhuma das famílias fez caso.
Nesse meio-tempo, os dois moraram uns meses na casa de Dominga Helena Honorato, mãe de Nelinho, e, após uma visita natalina, Teia voltou a ficar em casa dos pais, enquanto o marido trabalhava no canteiro de obras da BR-101. Coisa de um ano depois uma cunhada avisou de um lote para comprar no Alto Perequê. Na época, Nelinho havia retornado ao Rio Grande do Sul e endossou a aquisição.
Dona de seu próprio chão, Maria Célia logo se ocupou de cuidar dos filhos que punha no mundo. A cada vez que o marido retornava de meses no mar, a prole aumentava. Ao todo, ela gerou treze filhos, dois dos quais não chegaram à vida adulta: um menino morreu aos quatro meses e uma menina depois de quase um ano e meio. Dona Izaura, parteira que morava na vizinhança, acorria quando chegava a hora, embora houvesse vezes em que Teia virava-se sozinha mais Deus. Para cada filho, escolhia um nome que começava com a letra “E”. Ednaldo, o caçula, nasceu quando ela já tinha 45 anos de idade.
Como Manoel demorava a voltar e nem sempre conseguia enviar o suficiente para manter a família, um irmão de dona Teia, Agenor, visitava-a semanalmente para saber se precisavam de algo. Só que isso não afastava toda a necessidade nem aliviava o sentimento de solidão, agravado pelo medo que ela sentia de ficar sozinha. Era cercada de bons vizinhos — embora não entendesse o porquê de suas filhas terem de brincar às escondidas com as crianças de pele clara das outras famílias. Da porta para dentro, entretanto, estava por conta própria. Além do mais, havia a “Encantada”: encontrou-a uma ocasião, quando lavava as roupas no córrego. A aparição deu-lhe um susto tão grande que ela largou o cesto de roupas e foi socorrer-se com as vizinhas briguentas que punham fogo na rua.
Em vista disso, urgia tramar contra Nelinho. Não que houvesse algo a depor contra ele: bem-apessoado, conforme atesta a fotografia do tempo do Exército, trabalhador, atencioso e sem vícios, era o que podia ser chamado de bom partido. Só que estava sempre distante, levava meses para voltar. Um dia, Célia tomou uma atitude intempestiva. Para variar, estava grávida, então mandou que suas filhas Nini (Eonice) e Branca (Eleonir) fossem, a pé, até Tijucas passar um telegrama ao pai, avisando que a esposa estava para morrer. Não demorou até ele aparecer na porta de casa, esbaforido.
Quando soube do embuste, Manoel esbravejou: “Tu é maluca mesmo!”. Teia não se fez de rogada: mandou-o escolher entre o posto de trabalho lá no Sul ou a esposa. Percebendo que a ameaça era a sério, Nelinho deu baixa no antigo emprego e arrumou vaga na tripulação de um pesqueiro de Itajaí. Daí por diante, as coisas melhoraram: a cada 25 dias ele estava em casa e ficou mais fácil conseguir vales quando necessário, bastava colocar no ônibus a Nini, que na época tinha apenas nove anos de idade, para que ela fosse, sozinha, até a firma buscar o dinheiro.
No limiar do novo século Nelinho requereu aposentadoria. Não deixou de vez o mar, visto que a cada temporada de tainhas se juntava aos camaradas de uma canoa do Mariscal. Nem ficou de pernas para o ar: retomou um conhecimento que obteve de olhar o pai fazer e desandou a confeccionar balaios. Para tanto, subia o morro nos fundos da Rua do Fogo para colher taquara-mansa e bambu e trançar cestos para usos diversos, desde artigos de pesca a itens de decoração. E vinha gente de longe para adquirir os produtos.
E tudo caminhava relativamente bem até o dia 17 de junho, quando seu Manoel cismou de ir ao Mariscal pescar. Dona Teia desaconselhou por um motivo simples: o marido andava esquecido. Era uma quarta-feira e seu caçula estava em Curitiba (PR), mas ligou querendo saber se o pai havia passado mal: “Passou mal nada, tolo! Tá trabalhando”, replicou a mãe, que nada desconfiava. Até que a notícia se confirmou. O médico que atendeu Nelinho não soube dizer o que aconteceu e anotou “causa desconhecida” na certidão de óbito. “Acho que morreu de emoção”, opina dona Teia, que já guardava um luto obstinado pela morte de Edevaldo, quase vinte anos antes, e decidiu ensimesmar-se ainda mais, para desconsolo de seus demais filhos.
Foi o fim dos animados bailes de Natal na casa 100 da Servidão Silva. Antigamente, a turma amanhecia dançando — dona Célia inclusive. Hoje em dia, quando os familiares se reúnem e assam um churrasco debaixo das telhas da garagem, ela recolhe-se ao quarto e remói suas dores. Os filhos se ressentem dessa teimosia, consideram-se menos queridos do que aquele que partiu, pois, ainda que a morte de Nelinho tenha sido um baque tremendo, a do garoto que amava a sua motocicleta foi pior: “O marido é um estranho, mas um filho é para acabar com a gente”, justifica.
Por tudo isso, dona Teia do Balaio decidiu: a hora que Deus quiser, é só chamar. “Tem gente que tem medo de morrer; eu não”. Sua preocupação era ir antes de os filhos terem crescido. Agora que todos eles se governam, sente que sua tarefa está concluída.
Só que há uma falha nesse cálculo — e ela está bem à vista, interessada em ouvir cada palavra que o equipamento fotográfico capta. Dona Teia, que já não lembra com certeza o nome de todos os filhos, não vacila em dizer que tem 34 netos e 29 bisnetos. Dois daqueles (Edinei e Kayane) moram com ela, assim como a mãe Eleziane. E há mais descendentes em volta — gente que, certamente, não compartilha de seu entusiasmo em seguir adiante. Nem a própria saúde compactua com essa ideia, visto que, a cada visita ao médico, o diagnóstico invariavelmente é: “A senhora está melhor do que eu!”.
Portanto, sossegue, dona Teia. Fique mais um pouco e nos conte mais histórias da Rua do Fogo.
(*) Entrevista concedida em 31 de agosto de 2019.