Faz aproximadamente seis anos que Luizinho da Ambulância cumpre a mesma rotina: acorda toda madrugada para cuidar da rua onde mora. Não, ele não tem contrato para fazer a vigilância do perímetro. Com seus cabelos brancos, pouco mais de 1,60 metro, corpo franzino e quase 64 anos de idade (os completará em 11 de agosto), não seria uma presença ameaçadora, afinal de contas. Tampouco a Pedro Guerreiro carece dessa preocupação, pacata como é: povoada de casas de veraneio, é tranquila na maior parte do tempo. Só quando há função no El Fortin, casa noturna localizada no final da rua, é que se vê uma mudança no ambiente, com a procissão de jovens voltando pela via quando a luz do dia já começa a franzir-lhes a testa.
Luizinho, na verdade, faz a manutenção do logradouro (não de toda a extensão, mas do trecho pavimentado de 240 metros desde a Lúcio José Airoso, a “rota de fuga” quando o trânsito de verão congestiona a Governador Celso Ramos). Também não é pago por isso. “Faço porque gosto”, afirma o simpático morador, que conquistou uma efêmera notoriedade no último mês de janeiro, quando um vizinho usou o celular para filmá-lo pintando uma lombada tarde da noite. As imagens correram perfis do Facebook e chegaram à redação das emissoras de tevê do Estado, o que trouxe repórteres à porta de sua casa.
Embora visivelmente lisonjeado com a atenção dispensada, Luiz Apolinário Santos seguiu fazendo tudo como sempre fez: ao menos três vezes ao ano ele pinta muros e meios-fios (e nisso conta com alguma colaboração para comprar as tintas) e diariamente arranca o mato que se insinua entre as lajotas, limpa os terrenos baldios e varre as calçadas da Pedro Guerreiro, no bairro do Perequê (para alguns Vila Nova, em virtude da proximidade com a chamada localidade do CTG). “É como se eu fosse o dono da rua”, pondera — sem, contudo, demonstrar ciúmes: a rua é dele, mas é de todos, como deve ser. A diferença para as outras é que ninguém dispensa-lhes tanto zelo como o Luizinho da Ambulância faz com a sua.
O “da Ambulância” do seu apelido vem do tempo em que esse sujeito, nativo do Sertãozinho, comunidade que vive à margem da estrada estadual que dá acesso a Santa Luzia (a de Porto Belo e a de Tijucas), trabalhou como motorista da Secretaria de Saúde do município, na década de 1990. Bem antes disso, a boleia já era uma companheira: Luiz fez a vida conduzindo caminhões e caçambas de empresas da cidade. Hoje, já perto de se aposentar, é um dos zeladores da companhia que presta serviços à Secretaria de Obras, dando expediente no entorno da prefeitura e da igreja Senhor dos Passos. O fato de ver seus tempos de carteira assinada chegarem ao fim não quer dizer, entretanto, o adeus de sua carreira de zelador voluntário.
Na verdade, a dedicação deve até aumentar, com mais horas livres além das madrugadas de que Luiz dispõe. “Eu gosto de fazer isso aí. Não sou obrigado a fazer, ninguém me manda fazer, mas eu gosto, me acostumei naquilo ali. E tenho orgulho de fazer isso, me sinto bem”.
PEIXEIRO NO SERTÃOZINHO
Luiz é o quinto dos treze filhos que o casal de lavradores Apolinário Santos e Benta Alaíde da Silva Santos teve. Ele nasceu em Zimbros, para onde os pais haviam se mudado vindos da Itinga, comunidade do interior de Tijucas. Tinha apenas cinco meses de vida quando sua família buscou novo endereço e migrou para o Sertãozinho.
A somatória de fatores, em que se conta a origem humilde e uma prole considerável, não deixava outra opção aos Santos que não trabalhar muito. Aos filhos, como era comum, cabia aprender os passos dessa dança desde cedo. Apolinário investiu em uma salga e Luiz o acompanhava quando ia de carroça até Canelinha, São João Batista e Nova Trento trocar o peixe escalado por galinhas, ovos, polvilho ou farinha. Segundo ele, dinheiro era “bem pouco”.
No bairro havia uma cooperativa onde se adquiria os bens de primeira necessidade. E também uma escola, instalada no velho casarão de Domingos Linhares. Quando Luizinho ingressou no improvisado educandário, em 1961, este não possuía carteiras nem cadernos: as crianças se acomodavam no chão e usavam apenas folhas de papel (“e quem era mais pobre do que a gente, a gente repartia a folha no meio”).
Por volta de 1964 as carteiras, enfim, chegaram, mas não esquentaram lugar: foram transferidas para a recém-construída escola do Perequê (atual Catarina Benedita Guerreiro, nas proximidades do Supermercado Koch). O filho de Apolinário chegou a estudar ali, pois cursou três vezes a quarta série (ele faz questão de frisar que não foi por motivo de repetência, mas porque a lida na roça atrapalhava a frequência. Além disso, não existia quinta série. A professora, dona Maria Conceição, compensava ensinando matérias do ano seguinte): “Até que aprendi bem”, considera.
Digna de boas notas, também, era a sua aptidão comercial. Antes que o pai abrisse a salga (o fez por volta de 1970) e Luiz viajasse pela região conduzindo uma carroça cheia de peixes, ele conseguiu algum dinheiro recolhendo lenha do capoeirão para vender. Uma das clientes era dona Loca, mãe de Manoel Felipe, personalidade política local, para quem também trazia ovos caipiras. Mais tarde, quando Apolinário se desfez da salga e levou a família para morar perto do mar — instalando-a numa das cabeceiras do rio Perequê —, Luizinho vendeu hortaliças na Meia Praia, cujo ponto de maior movimento turístico ficava na rua Solimar, atual 305. Ainda empregou a carroça no comércio de aterro para particulares e, em algum momento, ofereceu milho e picolés na praia.
Tudo isso ele fez até 1978. Nesse ano, duas coisas aconteceram: Luiz saiu para trabalhar fora do município e também se casou. A primeira experiência foi curta: ele ficou apenas alguns meses como funcionário de uma empresa de ônibus de Curitiba (PR), voltando a Porto Belo logo em seguida. A segunda durou duas décadas: em agosto, passou a viver com Maria Alcira Soares Santos, moça muito mais nova que ele (devia ter treze anos, contra os 24 do rapaz), em uma casa de palha nas terras dos sogros, no chamado Morro da Luzia. Maria era de São João Batista e conheceu o portobelense por meio dos irmãos.
Luiz e Maria tiveram cinco filhos. Silvana, a primogênita, nasceu em 1979. Com um ano e sete meses ela morreu, vítima de um acidente protagonizado pelo próprio pai. Na época, Luizinho já trabalhava como motorista, fazendo as entregas de gelo do empresário Arno Baron. No dia fatídico, o caminhão da firma enguiçou em Zimbros e Luiz foi até Itapema buscar um mecânico. Ia levá-lo até onde o veículo quebrara, mas resolveu passar em casa e tomar um café. A menina estava à mesa. Luiz serviu-lhe um pão e saiu em seguida. Ele e o mecânico embarcaram na Kombi, deram partida, mas não notaram quando Rafaela deixou a mesa e correu diante da perua, talvez esperando obter um último abraço do pai. “Foi coisa de minutos”, lamenta Luiz.
LUIZINHO DA AMBULÂNCIA
Em 1993, início da administração do peemedebista Sérgio Luiz Biehler à frente da prefeitura de Porto Belo, Luiz Apolinário foi convidado a ingressar no serviço público. Já era um experiente motorista de caminhão, mas não foi incorporado ao pessoal da garagem e, sim, como chofer de ambulância (na verdade, de uma Caravan bastante rodada, herança da administração anterior). Como tinha medo de defuntos, deve ter sofrido alguns sobressaltos, pois seu veículo fazia as vezes de rabecão. Uma ocasião, teve de levar o corpo de um amigo (“o Carlão, um senhor bem forte, cabeludão”) para ser enterrado em Lages. Uma parente do morto fazia-lhe companhia. Na altura de Santo Amaro da Imperatriz, um pneu furou. Como o estepe ficava na parte interna do veículo, foi necessário repousar o caixão no acostamento para realizar a troca. Detalhe: às duas horas da madrugada.
Mesmo assim, Luiz manteve-se no cargo até o fim do mandato. Teve tempo de se popularizar como o “Luizinho da Ambulância” e de insistir com seus empregadores para que o posto de saúde do centro da cidade tivesse um plantão, já que o atendimento ia somente até às 17 horas. Chegou, inclusive, a levar a demanda ao gabinete de dois deputados estaduais. Conseguiu, ao menos, que a ambulância permanecesse à disposição 24 horas por dia. Hoje, o pronto atendimento da Unidade Mista de Saúde Maurílio Manoel da Silva (ou, simplesmente, Posto de Saúde Central) permanece aberto, durante a semana, até meia-noite.
O episódio sugere alguma intimidade com o jogo político. De fato, Luizinho se sente à vontade nesse ambiente, acostumado que foi a ver o pai empenhado em questões partidárias. Herdou dele a afinidade pelo antigo MDB — depois PMDB e, de novo, MDB —, o que o aproximou de Biehler. É um “politiqueiro”, na acepção local de quem se envolve e gosta de política. “Até acredito, assim, que sou um cabo eleitoral respeitado”, concede. Na verdade, durante a campanha eleitoral de 2005, Arno Baron, cacique local do PDT, pediu ao ex-empregado que saísse a Vereador pelo partido. Luizinho topou, mas compreendeu que era pro forma, somente para fechar nominata. Não fez campanha; portanto, não levou.
Luizinho da Ambulância voltou a ser da ambulância durante um ano e meio de mandato de Mauro João Jaques e, depois, nos quatro anos da recondução de Sérgio Biehler à Prefeitura, entre 2001 e 2004. Depois disso, abandonou de vez o veículo branco. Também deixou de ser emedebista convicto, embora tenha apoiado o atual mandatário municipal, Emerson Stein (MDB): “Hoje, eu sou do melhor”, argumenta. Na eleição presidencial de 2018, esteve entre os 57, 7 milhões que votaram em Jair Messias Bolsonaro (PSL). “Acho que bem pouca coisa vai mudar, mas a gente tem esperança”.
O ANJO DA RUA
Faz 23 anos que Luiz Apolinário se mudou para o atual endereço. Vive na casa de número 100 com a segunda esposa, Ledi Vortmann, o filho desta, Jonathan, e a caçula do casal, Josiane. Até 2013, a rua não passava de uma estrada lamacenta, ladeada por mato e entulho. A vizinhança, então, uniu economias e bancou a pavimentação do trecho inicial — um trabalho bem executado, na opinião de Luizinho: “Você pode ver: é uma rua bonita, bem abaulada, larga”. Mais ou menos na mesma época, o distinto morador teve uma ideia incomum: após dar uma geral na entrada de sua morada — e aprovar o resultado —, fez o mesmo na dos vizinhos. Foi o início de uma curiosa obsessão: acordar de madrugada e zelar pela rua.
“Antes, eu pintava de cal [os meios-fios], gastava oito sacas. Este ano, eu pintei com tinta boa. Ganhei umas tintas de um amigo meu, mas muita tinta eu gastei do meu dinheiro”, conta.
No final de dezembro do ano passado, a prefeitura de Porto Belo entrou em recesso e concedeu ao funcionalismo um feriado prolongado. Luizinho gastou esses dias de folga “alisando” a Pedro Guerreiro. “Trabalhei direto, dia e noite quase. Derradeiro do ano também”. Pôs na cabeça que precisava deixá-la impecável (“sem um fio de capim”) para a temporada — quando as casas dos proprietários de fora, que na maioria do ano permanecem fechadas, começam a se abrir para o calor da estação. Apesar do serão extra, ele não conseguiu concluir tudo o que queria. Assim, continuou trabalhando nas semanas que se seguiram: “Emagreci 8 quilos nessa rua”, calcula.
Dia 9 de janeiro, o amigo Eduardo registrou o vídeo que se espalhou pela rede feito rastilho de pólvora e transformou o zelador voluntário em celebridade local. Milhares de visualizações, compartilhamentos e comentários chamaram a atenção da equipe do Balanço Geral, da RIC Record de Itajaí. A produção do programa ficou no pé de Josiane, insistindo para que o pai concedesse entrevista. Apesar do caráter comedido e sem pretensão de se gabar, ele aceitou.
“Essa história foi longe”, lembra o protagonista. Um empresário de Florianópolis, conhecido dele há anos por ter casa na praia de Perequê, ligou para parabenizá-lo, garantindo que havia enviado a matéria para amigos nos Estados Unidos e que sua esposa havia chorado ao assisti-la.
Durante a gravação da reportagem, vizinhos se aglomeraram para prestigiar o momento de fama do ilustre vizinho. O fato é citado pelo repórter Marcelo Nunes como prova da estima que a comunidade nutre por ele. De fato, Salvelina Ortiz, moradora da rua, declarou ao repórter o carinho que tem pelo amigo: “Eu amo ele de paixão. Ele representa, pra nós, um anjo da rua”.
Para o Luizinho da Ambulância, nada é mais importante do que o reconhecimento dos vizinhos, os quais considera parte de sua família. No cálculo dos seus bens mais caros, nem dinheiro nem fama — certamente passageira — se equipara a isso. “Eu me sinto rico porque tenho um carinho muito grande do pessoal. Essa turma de Brusque, Otacílio Costa, onde eu vou, pra mim, não tem pra ninguém, todo mundo me conhece. Eu agradeço a Deus, meus filhos tudo com saúde, tudo trabalhador, meus netos a mesma coisa. Então, é uma felicidade enorme”, conclui, o peito largo de orgulho, o “dono” da Pedro Guerreiro.
(*) Entrevista concedida em 16 de fevereiro de 2019.