Este é um verão daqueles para ninguém botar defeito. Diariamente, a temperatura em janeiro tem chegado perto dos 40 graus. Quem procurou as praias do nosso litoral para curtir um descanso certamente não se arrependeu. Nas conversas de botequim e nas reportagens que se lê por aí, no entanto, fala-se da falta dos turistas argentinos, importante fonte de recursos para a economia local nesta época do ano. O motivo é a crise econômica que o país vizinho vive. Dá-se conta de que a quantidade de “hermanos” que virão para Santa Catarina nesta temporada seja até 70% menor do que o considerado normal.

Na tarde deste sábado, 19 de janeiro, faz 31 graus em Porto Belo. A sensação térmica é maior. Alheia à crise na Argentina e ao movimento dos carros que se amontoam na avenida Governador Celso Ramos, a 400 metros de onde mora — mas não ao calorão —, Ivanilda da Silva Martins, 84 anos, abre as portas de casa para esta equipe de reportagem. A receptividade é a de quem tem, de fato, um grau considerável de intimidade com a visita: um dos nossos é afilhado de dona Nide, como é conhecida por todos.

Bem mais acolhedora que o sol abrasante é a sombra da área que fica nos fundos da casa da anfitriã. Além de refúgio contra o sol, este é o espaço em que essa senhora recebe — com muito gosto, segundo ela — toda a família. É aqui que fica o fogão a lenha, onde cozinha diariamente — o fogão a gás serve apenas para situações excepcionais ou para esquentar mais rapidamente uma chaleira d’água para o café. No muro que separa seu terreno da propriedade em que mora a filha Silvana e a família da neta Talita um portãozinho denuncia que o entra e sai é constante. “Quando eles vêm do trabalho nem vão pra casa, já param aqui pro café”, assevera.

Essa espécie de entreposto do clã Martins, todavia, já viu dias de melancolia, embora igualmente frenéticos. Muito antes que netos e bisnetos corressem à solta pelo vasto terreno em suave aclive da propriedade, cujo término se perde em meio a improvisado pomar (dali para trás o mato segue sem impedimentos até o morro chamado dos Anjos; ao transpô-lo, chega-se a Bombas), muito sacrifício se fez necessário.

“Dava um romance a vida da gente”, considera dona Nide, o olhar distanciado de quem acumula saudades, um sentimento agridoce ao confrontar o passado. Partidas povoam a lembrança e um silêncio ensurdecedor se estabelece nas horas em que, inevitavelmente, a casa se esvazia. Se fosse romance, muito provavelmente sua narrativa teria tons de drama.

ÁGUA DA CARIOCA E ROUPAS NA BICA
Ivanilda nasceu em 1934. A casa onde cresceu já não existe, mas quem frequentou a Escola de Ensino Básico Tiradentes quando ainda se chamava Grupo Escolar Tiradentes deve lembrar de uma casa de alvenaria construída quase defronte à entrada principal da instituição. Tinha a cumeeira alta de um chalé e janelas estreitas. Sua face era voltada para a rua lateral (hoje denominada Orlando Pereira).

O proprietário chamava-se Hermógenes Manoel da Silva, um pescador artesanal natural da praia de Bombas. Viúvo da primeira esposa, com quem teve quatro filhos (três homens e uma mulher), voltou a se casar com Madalena Maria Serpa, nativa da Enseada Encantada. Com ela, Hermógenes teve outras quatro filhas. Nide foi a terceira.

“Naquele tempo não tinha luz elétrica, não tinha água encanada, não tinha nada”, conta a octogenária. Nem o Tiradentes havia, sendo toda a área em torno de onde ele foi edificado uma pastagem sem fim. Vizinhos, alguns poucos: a tia Malfiza, seu Manelinho, Chico Polícia se estabelecendo mais recentemente. De resto, era um ermo.

Tal conjuntura não recomendava facilidades. Sem torneiras com que se servir, cumpria às filhas de Madalena buscar água diariamente na carioca que abastecia boa parte do município, distante duas quadras de casa (uma lonjura para qualquer criança munida de baldes). O olho d’água, guarnecido por uma gruta de pedras feita por escravos em fins do século 18 ainda existe, mas só com algum esforço se pode localizar. Tombada como patrimônio histórico municipal em 2015, hoje se encontra tomada de mato. Nenhuma placa registra a sua importância.

Um pouco mais adiante, em direção à encosta do morro, ficava a “Bica”, córrego (hoje bem menos do que isso) onde se lavava roupa, os joelhos marcados pelas rochas do leito. “Era tudo com sacrifício”, resume dona Nide, que parece não recordar dos momentos em que era permitido brincar — se é que os teve. Na verdade, aos nove anos de idade ela saiu para trabalhar como babá. Cuidava de crianças não muito mais novas do que ela em casas de família de Tijucas, Camboriú e, posteriormente, já na altura dos doze anos, Porto Belo, onde ajudou a criar os filhos de Orlando Guerreiro (“todos pagõezinhos ainda”). As irmãs fizeram o mesmo: Zilda foi para Porto Alegre, Sueli para o Rio de Janeiro. Até hoje vive por lá.

“Naquele tempo os pais não podiam dar conforto pra gente, né? Tinha que entrar de empregada pra gente poder passar”, explica a dona de casa. A despeito das dificuldades que a época impunha, ela garante que a generosidade dos pais não conhecia limites. Quando chegava das pescarias, Hermógenes não hesitava em distribuir na vizinhança os peixes que trazia no balaio. “De bondade não precisava existir outro no mundo”, assegura a filha.

HERMÓGENES E MADALENA
Em meados dos anos 1940, o casal Getúlio e Maria Soares, com seus muitos filhos, chegou a Porto Belo vindo do interior de Tijucas. Sem ter onde morar, abrigou-os em um rancho de pesca perto de onde hoje está o Píer Municipal. Depois de um período instalados no improvisado local, eles precisavam de um teto mais adequado. Havia um chalé inacabado, obra de um alemão que o abandonara após ter erguido apenas as paredes, vizinho à casa de seu Hermógenes. Para que servisse de morada à família Soares, o pescador pôs assoalho e janelas utilizando um estoque de madeira que estava destinado à construção de uma cozinha em sua própria residência.

Não bastasse ter providenciado abrigo, os Martins ajudaram a tratar das crianças do vizinho contra um surto de sarampo. Hermógenes e Madalena trouxeram os filhos do casal tijuquense para casa e cuidaram deles como se fossem seus, alimentando a todos com caldo de galinha que a mãe de Nide criava e abatia diariamente. Até hoje, quando as duas senhoras se encontram, dona Iracema, uma das filhas de Getúlio, relembra com gratidão daqueles tempos.

Madalena, como se vê, não ficava atrás em termos de abnegação. Parteira, benzedeira e curandeira, era a quem os portobelenses recorriam nos momentos de necessidade. E ela não se furtava de sair noite alta para auxiliar alguém. Hermógenes não se importava: estava acostumado ao caráter da mulher. Também não estranhava quando ela decidia assistir a gestante até cumprir o tempo de resguardo, 40 dias de cuidados exclusivos. “Dindinha Madalena” era como todos a chamavam, pois de fato apadrinhou muitos. “Coração de anjo”, é como define sua filha, com quem ela passou a viver depois que o marido morreu. Nessa época, meados dos anos 1950, Nide já havia casado e era mãe de dois filhos. Madalena, como era de se esperar, abrigou os netos sob as asas.

JOVENTINO MARTINS
Assim que começou a trabalhar na casa de Orlando Guerreiro, em 1946, Nide conheceu Joventino Lucas Martins. Cinco anos mais velho que ela (tinha, portanto, dezessete anos), Tino era irmão de Bernardina, patroa da menina. O flerte evoluiu para relacionamento sério nas domingueiras dos salões de baile da cidade: “Hoje em dia é que Porto Belo não tem salão, mas naquela época tinha dois, três”, Nide revela. Um deles, chamado Aliança, ficava à beira da praia do Centro, onde hoje está a bela casa dos Stodieck, e testemunhou o “namoro de rapaz pequeno” dos dois: “Naquele tempo, meu filho, namoro era um lá, outro cá. Não era igual hoje”.

Moço bonito e direito, Tino fazia bicos, quando apareciam, e pescava. Em 1954, após oito anos de namoro, o casal decidiu se juntar. Seguindo a velha fórmula, Nide aproveitou a cobertura da noite, colocou algumas peças de roupa na sacola e fugiu de casa. Encontrou-se com o namorado e seguiram para a casa da família deste, nas terras onde hoje a octogenária narra sua história. Isabel Ramos, mãe do rapaz, era viúva e morava com a filha Bernardina. A propriedade estava, assim, disponível. Ivanilda, no entanto, logo voltaria à casa dos pais.

O primeiro ano de casamento coincidiu com a construção do Grupo Escolar Tiradentes, distante um atravessar de rua da casa de Hermógenes. Tino conseguiu emprego como servente de pedreiro. Ao fim das obras, com Sérgio, o primeiro filho, a caminho, ele tirou carteira de pescador e foi trabalhar em Santos (SP). Nide voltou a morar com os pais, à espera de que a casa que estava sendo construída no terreno da sogra ficasse pronta. Ali também nasceu o segundo filho, Rubens. Então, Hermógenes morreu. Um acidente durante uma farra de boi na Enseada Encantada foi o responsável: ele atravessava a rua quando a corda que segurava o animal esticou e o atirou para fora da estrada, sobre um leito de pedras. Contraiu uma lesão em decorrência do tombo e, um ano depois, estava morto. Alguns meses depois, Nide, Madalena e os netos se mudaram para a nova residência.


“Naquele tempo, namoro era um lá, outro cá. Não era igual hoje”


O local era ainda mais isolado que o anterior. Uma trilha em meio ao matagal conduzia à propriedade, cercada, de um lado, por um banhado que levava ao ribeirão; do outro, por pastos a perder de vista. Nos fundos, um cafezal. Ainda não havia luz nem água encanada. Com Tino distante léguas de mar, era preciso que as mulheres se encarregassem de todo o trabalho doméstico, que consistia em lavar roupa no riacho próximo, subir o morro de Zimbros à cata de lenha, cuidar da criação e, principalmente, dos filhos. Nide teve nove (o último deles, Márcio, morreu com um ano de vida). Das enfermidades que tiveram e das noites maldormidas Tino pouco soube. Nide ainda lavava roupa para fora, uma forma de evitar apertos. Foi lavadeira durante doze anos.

Os filhos cresceram. Uns casaram, tiveram os próprios filhos, outros mantiveram-se solteiros. Todos, presume-se, receberam a sua cota de dilemas. Construíram vidas autônomas, mas quase todos permanecem em órbita da casa construída à margem da rua Alda Tavares Matias, poucos metros depois do ribeirão (ou da vala funda que o substituiu), uns 300 metros antes da subida do morro de Zimbros. Ali Madalena morreu, aos 92 anos de idade, depois de muito fazer o bem. Após 40 anos de mar, Tino deu baixa na caderneta de pescador e pôs o pé em terra para não mais tirar. Teve, entretanto, uma aposentadoria curta. Talvez por sentir falta da antiga rotina, algo comum entre velhos marujos, adquiriu hábitos que não condiziam com o rapaz que fora. Tinha 65 anos quando faleceu. Dona Nide diz que foi em razão de uma epilepsia temporã.

Em um artigo recente para o Estadão, Luis Fernando Verissimo opinou que vidas não dão filmes. A não ser, concede ele, “que essa frase venha acompanhada de uma atenuante — como ‘de baixo orçamento’”. Para o autor, só parecem extraordinárias na opinião de quem conta.

Podemos supor que o mesmo julgamento sirva para os livros. Assim, dizer “minha vida daria um romance” talvez soe clichê. Mas uma boa história precisa mesmo de uma trama que beire o improvável? A ressalva vem das próprias linhas de Verissimo, que cita o elogiado filme do mexicano Alfonso Cuáron, Roma, uma obra de arte construída a partir de suas memórias, sem que tirasse dali nenhum momento apoteótico: “O diretor decidiu que sua vida daria um filme, e deu”.

Vidas são assim. Contam histórias, mesmo que ninguém as queira publicar. Se dariam um folhetim ou uma nota de rodapé depende do narrador, sua entonação e seus silêncios. E também de sua disposição em seguir na fronteira permeável entre o acontecido e o imaginado — toda memória, no fim das contas, se mistura em alguma medida com o desejo.

Mas tudo isso, já ensinava García Márquez, é parte do contar. A quem ouve — e, mais especialmente, registra — cumpre dar sentido ao fato narrado e usar os signos conforme sua disposição de seguir o roteiro proposto. Além disso, há a questão da identificação: a história de dona Nide se parece com a de muitas (e muitos) que viveram nesta península longos anos. Tem, portanto, um sabor de nostalgia, lembra as noites escuras da infância, quando os vaga-lumes pontilhavam de luz a beira dos caminhos na primavera.

Pode não ter sido drama nem comédia, nem de longe uma aventura, mas tem sido, a seu modo, uma jornada e tanto.

(*) Entrevista concedida em 19 de janeiro de 2019.

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