Edmundo Campos estava no quarto ano de engenharia na Universidade Federal de Santa Catarina quando teve uma epifania. Viu a marcha acelerada das conquistas tecnológicas empurrar o homem rumo à obsolescência. Sentiu que, depois daquilo, não poderia mais ficar. Largou a faculdade e voltou a Itajaí, onde nascera, disposto a zerar os equívocos que cometera até então. Descobriu a cerâmica e fez dela um meio de vida. A cerâmica, por seu turno, deu-lhe mais que isso: “Foi a minha salvação”.
A trajetória do artista, a partir desse episódio, seguiu no sentido de fazer daquela imagem um manifesto — o seu legado. A obra está hoje fixada no muro em frente à Alameda da Cultura, no centro de Porto Belo. Natural que ele tivesse escolhido a cidade para eternizar seu mito fundador quando há tantos “edmundos” circulando por aí (pode, inclusive, surpreendê-los em algum estabelecimento em Portugal, França ou Alemanha), já que há 28 anos encontrou discreto refúgio no Alto Perequê, ao pé do Morro do Bicudo, depois de bastante peregrinar.
Quase no fim da Juares Pereira, uma estradinha de terra que mal deixa dois carros se cruzarem, estão o ateliê e a casa onde Edmundo vive com a esposa Ione, a filha Luiza (a outra, Marta, mora em Itajaí), três cachorros, dois gatos e umas sete galinhas. Chegou a esse recanto rural e um pouco menos tranquilo do que foi no início (produtores vizinhos estouram foguetes para espantar os pássaros da colheita e deixam um dos cães louco de medo) por volta de 1990. Antes, em 1980, viveu dois anos em Zimbros, esquecido entre pescadores (menos para uns poucos e ruidosos amigos, que o punham em maus lençóis entre os nativos quando o visitavam). E bem antes do que isso, seu mundo deu muitas voltas.
INFÂNCIA LIVRE
Edmundo José Angulski de Campos nasceu no último dia de Escorpião de 1952. Naquele 21 de novembro, uma enchente assolou o Vale e impediu que Ubaldo Oliveira Campos levasse a esposa Lita Angulska, em trabalho de parto, até o hospital. Acabou tendo-o em casa, na rua Silva, bem no centro de Itajaí.
Essa estreia acidentada no mundo dos vivos, obviamente, Edmundo soube de ouvir contar. Ele sequer guarda lembranças do endereço natal, uma vez que a família se mudou logo depois para a Gil Stein Ferreira, distante uns dez minutos de caminhada da rua Silva. Nas imediações da Escola Victor Meirelles, da Igreja Matriz, do campo do Marcílio Dias e da tradicional Sociedade Guarani, viveu uma infância livre, de andar descalço, tomar banho de rio, caçar passarinhos e correr à solta de bicicleta.
“A gente pode dizer que viveu dentro de uma bolha, de proteção e até mesmo de alienação, mesmo sendo criança. Não tinha problema nenhum”, recorda o artista, que costumava pedalar para todo canto. Ia a Luiz Alves, Brusque, Ilhota e Itapema, às vezes na companhia de professores e colegas da escola. Um tio morava na Meia Praia e ele o visitava com regularidade, junto de seu pai. O futuro paraíso da construção civil ainda era território de Porto Belo (Itapema só se emanciparia em 1962) e uma praia quase deserta, apenas meia dúzia de casas beirava a restinga.
A bolha começou a se romper no final da década de 1960. Até então, o pai de Edmundo atuava como empresário do setor pesqueiro, tendo como principal produto o camarão, que era vendido cozido, salgado e seco. A adoção em larga escala da refrigeração industrial alterou a dinâmica de processamento do crustáceo, colocando em dificuldades todos os que não se adaptaram à mudança. Foi o caso de Ubaldo, que viu seu negócio entrar em declínio.
“A gente pode dizer que viveu dentro de uma bolha, não tinha problema nenhum”
Ao revés econômico enfileiraram-se outros problemas, mas Edmundo, vivendo uma tumultuada “adolescência tardia”, como ele descreve, mal se deu conta. Não pôde, entretanto, ficar alheio ao efeito mais drástico: a família deixou a cidade portuária para se instalar em Joinville, no norte do Estado. Também não escapou a um drama pessoal: o serviço militar. Alistou-se no Exército e foi mandado para um quartel no Rio de Janeiro. Era o ano de 1970, do milagre econômico, do tricampeonato mundial de futebol e da tortura nos porões da repressão. Para ele, um ano a ser esquecido.
Passados os doze meses de caserna, Edmundo retornou a Itajaí. Concluiu o terceirão no Colégio Salesiano, prestou vestibular e foi cursar engenharia na UFSC: “Cometi essa imprudência”, admite, em razão de sua pouca intimidade com os números. Mesmo assim, perseverou cinco anos em Florianópolis, alternando os estudos com uma vida monástica na capital do Estado: “Era quase um indigente”, afirma. “Comia no refeitório universitário, morava em pensão, me virava”.
Apesar do esforço, não obteve o canudo.
A ARTE
Mais uma vez, voltou à cidade natal. Só que, agora, não tinha um plano, apenas o vago desejo de “inventar uma coisa pra fazer” — algo que aquietasse seu espírito. Mas o quê? “Resolvi fazer cerâmica”.
Era uma escolha compreensível, considerando o histórico familiar: professora, dona Lita tocava violino e pintava porcelana — possuía até um forno para queimar as peças. Ubaldo, que após o período como empresário se tornara auditor de uma companhia de engenharia, colecionava manuais de cerâmica com vistas a ter um hobby quando parasse de trabalhar — morreu no exato dia em que se aposentou, aos 55 anos de idade.
Edmundo assumiu o bastão. Com pouco dinheiro, mas de posse do conhecimento teórico que a faculdade lhe deu, se instrumentalizou para transformar a argila em expressão: construiu um forno e montou a oficina num canto da propriedade dos pais em Itajaí. A parte criativa foi mais complicada, pois a cidade não tinha tradição na arte cerâmica — quando muito, o que se fazia com o barro eram tijolos. Seria preciso começar do zero e — mais importante — encontrar uma inspiração.
A resposta, novamente, estava ao alcance do olhar. Além do molhe, o mar e a vocação pesqueira da cidade sugeriram um ícone, que Edmundo abraçou: “Peguei o peixe como meu leitmotiv”.
Enquanto aprimorava sua técnica, ele recebeu o convite para mudar seu ateliê para uma sala da recém-inaugurada Casa de Cultura Dide Brandão, instalada no prédio da Escola Victor Meirelles em 1982. Ficou cerca de um ano, fazendo seus trabalhos e ministrando algumas aulas, até que uma mudança na situação política do município (a vitória do PMDB nas eleições de 1982) o levou a deixar o local.
Mais tarde, em 1983, a Companhia de Turismo e Empreendimentos de Santa Catarina (Citur) realizou uma feira no Parque Cyro Gevaerd, em Balneário Camboriú (onde hoje existe o zoológico e está sendo finalizado o Centro de Eventos), com o objetivo de apresentar as potencialidades do Estado aos turistas que visitavam a região.
Edmundo e um amigo, Silvestre de Souza, cortaram alguns bambus e montaram um rústico estande na feira. O artista levou suas peças para expor e o resultado foi bastante satisfatório. Além disso, foram os únicos representantes da cultura praieira na mostra.
“Peguei o peixe como meu leitmotiv”
O fato não passou despercebido pelo prefeito de Porto Belo à época, Manoel Felipe da Silva Neto, que no ano seguinte requisitou um espaço para promover sua cidade e convidou Edmundo a participar. Ali, ele conheceu a artista plástica Sueli Beduschi e o marceneiro Pedro Cândido da Silva, o Pedrão, ambos radicados no município. Também iniciou seu relacionamento com Ione Martendhal.
“Na verdade, foi a Ione que se casou comigo”, encurta a conversa Edmundo. Natural de Itajaí, 56 anos de idade, ela já o conhecia da vizinhança, pois morava na avenida Sete de Setembro. Ao se casarem, logo depois, passou a ser um contraponto ao estilo errático do artista, e teve importante influência na decisão deles de se mudarem em definitivo para Porto Belo.
Quando solteiro, Edmundo já havia morado um curto período de tempo no município. No início dos anos 1980, ele viveu em Zimbros (ainda um bairro portobelense) cerca de dois anos. Para o ceramista, foi uma espécie de retiro: não havia energia elétrica no lugar e a calmaria da aldeia pesqueira só era perturbada pela visita dos excêntricos amigos do forasteiro.
Uma década depois, em 1990, o itajaiense conversava com Sueli Beduschi no centro de Porto Belo. Explicava à colega seu interesse em se mudar para cá. A artista indicou-lhe um senhor que, por acaso, estava à vista e tinha uma propriedade para vender no Alto Perequê. Edmundo conversou com o homem e, no dia seguinte, a escritura passou de mãos.
PORTO BELO
“Estou aqui há 28 anos”, calcula o ceramista, indicando tanto a cidade quanto a área de 2.200m² quase colada ao Morro do Bicudo, afastada uns 500 metros da avenida José Neoli Cruz, estrada geral do Alto Perequê, acesso secundário entre Porto Belo e Tijucas. Um mosaico de sua autoria, afixado no muro que principia a rua, e uma placa de sinalização turística indicam o local para quem vem do Centro, mas é fácil perder a entrada se você não estiver atento. A melhor referência é o Núcleo de Desenvolvimento Infantil Augusto Bayer, a creche do bairro, quase na esquina da Juares Pereira. Nos fundos da rua, cercado de plantações e com um córrego atravessando a propriedade, estão a sua casa e oficina alquímica.
Instalar-se no Alto Perequê não foi uma grande mudança em termos de visibilidade. Quando chegou, não havia nada ali, apenas pasto. Além disso, a emancipação e o aumento paulatino do trânsito a cada temporada fizeram com que ele perdesse contato com o mercado promissor de Bombinhas. Por sorte, Edmundo havia estabelecido um importante canal de negócios com Florianópolis, o que possibilitou ficar conhecido entre os compradores de arte da capital. Também obteve alguns clientes importantes em Porto Belo, tais como o restaurante Ilha de Pirão, que aos poucos incorporou as peças do ceramista em sua decoração, promovendo uma necessária divulgação do seu trabalho.
Mas havia o que ele chama de “custo Porto Belo”. Gastar umas boas horas de carro para levar as filhas ao colégio em Itapema, por exemplo. Luiza, 33 anos de idade, e Marta, 26, se formaram em engenharia (ambiental e civil, respectivamente) e de certo modo “vingaram” o pai. O fato de ambas terem conseguido se educar com o dinheiro da sua arte é algo que o deixa satisfeito. Outra é a certeza de que tudo o que conseguiu foi por esforço próprio, seu e de Ione, sem qualquer facilidade ou incentivo governamental. “Ninguém me deu nada pra eu fazer isso, e eu nunca fui pedir. Existe porque eu resolvi fazer”.
Isso nos leva ao clichê ao qual todo artista, cedo ou tarde, é confrontado. Aquele que quer saber se, afinal, alguém consegue pagar suas contas com expressão artística. “Eu fiquei aqui”, ele responde, sabendo que isso não é pouco. Mas também não se ilude, pois tudo hoje em dia é transitório: “Vou ficar aqui até quando puder. Mas não tenho medo de sair andando, no sentido literal, porque eu não tenho onde chegar. Se eu não tenho onde chegar, onde eu estou é o meu lugar”.
OPERÁRIO DE SI MESMO
A arte de Edmundo Campos não encontra paralelo na tradição cerâmica do Estado, que foi trazida para cá pelos portugueses e é baseada no uso do torno de oleiro, mecanismo que tem mais de 7 mil anos e possibilita ao artesão, através do emprego da força centrífuga e da destreza das mãos, moldar a argila de modo a transformá-la em objeto. Tem, por outra, um pé na linha de produção industrial.
Não quer dizer, entretanto, que seja meramente utilitária. Mas o conceito está impregnado no estilo do itajaiense — que, inclusive, refuta o adjetivo “artista”; prefere ceramista ou, numa leve concessão, trabalhador da arte (“sou um operário de mim mesmo”, oferece, numa definição mais original).
Faz sentido, uma vez que ele lida com seu ofício de maneira pragmática, com preocupação com a produtividade e cumprimento de expediente. O que não o impede, por outro lado, de filosofar nem de dedicar algum tempo para dialogar com quem o visita. Gente que, às vezes, vem de longe para conhecê-lo, tomar um café e trocar ideias — o que, de certo modo, valida todo o seu esforço: “Isso é uma maravilha pra mim. Se eu não tivesse as pessoas aqui, eu não poderia ficar”, raciocina.
Achar um termo para definir a sua produção não é algo muito simples. Não há muita referência, mas um nome se sobressai: Jorge Fernández Chiti. Em 1990, Edmundo participou de um encontro interamericano de ceramistas na Argentina e voltou fã do pesquisador portenho, autor de várias obras sobre o assunto: “Encontrei uma fonte de conhecimento técnico e literário honesta”, explica, pontuando as duas características que fazem do seu trabalho algo único.
Na questão da técnica, há o emprego da monoqueima, um processo menos convencional: “Eu uso o esmalte cerâmico na peça ainda crua e economizo uma queima. Isso viabiliza economicamente”.
Outro resultado desse método é o aparecimento de imperfeições na superfície da obra. Para o ceramista, trata-se de uma ocorrência esteticamente aceitável, visto que proporciona uma tensão visual no cerne da cor, o que ele incorporou como parte da sua assinatura: “Eu uso cores que você não consegue dizer com uma palavra só. Tem que usar três ou quatro palavras para expressar o que está vendo. É uma sutileza da percepção visual. E da arte”, argumenta.
Painéis em mosaico, arandelas, móbiles, peças decorativas de todo gênero saem do forno de Edmundo. E estão por aí, em grandes totens na beira-rio de Itajaí, em mural ao lado do píer municipal de Porto Belo, em restaurante badalado da Asa Sul, em Brasília, em residência na Ilhabela, em restaurantes da Barra da Lagoa e nas lojas de artesanato, entre muitos outros locais onde a sua obra se universalizou.
De todas, uma é apontada como a sua obra-prima. É justamente aquela que surgiu como um insight enquanto ele apenas se esforçava em elucidar os cálculos da engenharia. A sua visão de uma hiperdose de novidades tecnológicas acavaladas em um espaço de tempo curtíssimo, pavimentando um futuro no qual a máquina assume o lugar do homem na linha de produção.
Essa ideia foi formulada em argila pelo artista, que chamou-a de Painel Político e foi vendida à Fundação de Cultura de Porto Belo. Está chumbada na parede da antiga sede da Telesc, próxima à tradicional casa de Fernando Scheffler na Alameda da Cultura, bem no centro do município, à sombra dos jambolões e à vista de quem quiser ver. “Quando eu obtive aquela compreensão do sistema, eu abandonei a universidade. Eu fui fazer cerâmica por causa daquele painel. Aquele é o meu grande recado”.
(*) Entrevista concedida em 12 de outubro de 2018.